Thalámas Salamatu: «O primeiro passo para se revoltar, é tomar consciência da escravidão, se somos conscientes da nossa situação de escravidão, podemos pensar um outro horizonte»
«Reivindico a necessidade de mascarar a vida. Interessa-me tudo o relacionado com as identidades, como nos construímos, como nos mostramos»
Sexta, 28 Fevereiro 2014 00:00

Xemma Fernández - O último livro de poesia editado pola Através | Editora intitula-se Prédios, "O livro é em si próprio um prédio, qualquer um duma cidade qualquer". O seu autor, mascarado em Thalámas Salamatu, procura com a ambiguidade e a ocultação "subverter a ordem", ser "um grão de areia, na máquina" no campo da dissidência. O PGL teve uma conversa com ambos.
Como olharmos Prédios? Como se constrói?
Todas temos essas imagens das cidades à noite, os prédios com as janelas iluminadas e por vezes imaginamos como serão as vidas das pessoas que os habitam. Os poemas são como essas janelas iluminadas. Funcionam como momentos, memórias, vidas independentes de quem habita esses espaços. O livro é em si próprio um prédio, qualquer um duma cidade qualquer.
O primeiro texto começa com duas frases que ao longo do livro vão adquirindo um significado um bocado assustador... on ne se doutait de rien. C'etait une belle journée. E se ligas isto com o último poema "No mencer/ percorrendo a rua/ um carro com altifalante:/ voltem às suas unidades de produção” parece que fechas o livro com uma sensação similar a que pode deixar um romance de ficção cientifica sobre qualquer uma distopia de final inquietante...
Não há nada mais distópico que o hoje. O livro não bebe de distopias futuríveis, pesadelos que povoem os sonhos, bebe do real em que habitamos. É um quotidiano de ordem, de sucessão do tempo, de dias em que não há lugar para a rutura...Pode parecer um panorama desolador, mas quando olhamos através do televisor, Prédios transforma-se numa espécie de diário, de caderno de notas.
Estes prédios parecem manter-se em pé pelo medo, mas sobretudo, pelo quotidiano. A repetição como aprendizagem, é também uma disciplina?
Em certas pessoas há incomodidade, e dependendo do seu grau, falam-nos de pessoas confusas, doentes mentais ou sujeitos ou ideologias perigosas. Há toda uma categorização da vida e uma etiquetagem para os momentos que tenhamos. Desde pequeninos, somos bem levados. Mas essa incomodidade pode ser a fenda onde rachar os muros.
E a dissidência como doença cerebral? É possível apostatar da linha reta? E por que ficar no eu? Não há chamada à construção comum. Não há caminho?
O indivíduo foi entronizado como o ser supremo na sociedade que habitamos. Os altifalantes repetem a toda hora a ideia de sermos pessoas únicas, irrepetíveis. Oferecem-nos mil e uma possibilidades de sermos o que queiramos, “está na tua mão poder realizar os teus sonhos” repetem os iphones, mas esse discurso convive com uma outra prática, a repressão feroz, a marginalização das inadaptadas, das raras, das inconformistas, dos seres políticos. Contraditório poderíamos pensar, mas não, “o sistema é assim, darling” diz-nos Matías Prat.
Interessa-me, também, como se maneja o pensar diferente, isso que chamamos dissidência, digamos no outro campo, na Resistência. E aí temos de melhorar muito também. Só temos que olhar um pouco o contexto atual no nosso país, e o que acontece nas estruturas partidárias chamadas de transformação, para sermos conscientes disto. No poema a que te referes, uma das coisas que mais me comove é o desassossego que provoca na personagem o facto de ser o mundo que ajudou a construir, o que sonhou, quem o devora. Isso deveu ser terrível para a gente que o viveu.
Isolar aos indivíduos é o que permite a ordem e o controlo, mas o que faz possível manter a cada um nesse espaço de solidão é o medo com mãos de oleiro. Por que achas ser o patamar um território incómodo?
Dalgum jeito, representa a incomodidade de relacionarmos-nos com as outras pessoas. Todas temos vivido essas viagens no elevador, coincidir com outras pessoas e sentir o incómodo. De desejar que o elevador vaia mais rápido, e assim evitar esse silêncio. A atomização dos indivíduos foi um dos grandes objetivos das estruturas de controlo. É foi uma estratégia bem-sucedida. Esfarelando as comunidades seria mais fácil introduzir o medo e desse jeito controlar as pessoas. Os espaços comuns nos prédios, na vida, estão desertos. Antes de mais, faz-se preciso voltar habitar, ocupar esses lugares e sermos conscientes da importância de olhar no rosto do outro.
E a violência contra o bonsai que não esquece o bosque?
O primeiro passo para se revoltar, é tomar consciência da escravidão, se somos conscientes da nossa situação de escravidão, podemos pensar um outro horizonte. Só quando somos conscientes disso, é possível pensar a revolta. Quando isso acontece, temos de ser conscientes, também, que a bota que temos na gorja vai fazer mais força para nos impedir libertar. A primeira vez não seremos quem de nos libertar, o intento fica como memória, como um episódio, leia-se Revolta Irmandinha, Comuna de Paris, Revolução de Outubro, Allende, Amílcar Cabral, que nos ajuda a não esquecer a situação em que vivemos,
Pergunta obrigada é sobre Thalámas Salamatu. Por que este nome? De onde chegam estas duas partes?
O nome é uma máscara, como qualquer outra que estamos habituados a utilizar nas nossas vidas. Reivindico a necessidade de mascarar a vida. Interessa-me tudo o relacionado com as identidades, como nos construímos, como nos mostramos. Gosto da ambiguidade, da ocultação para subverter a ordem. Ocultar-se. Despistar. Também na linha do conflito, invisibilizar-nos para dificultar o nosso controlo. Há quem reinvindicava ser areia e não graxa na máquina. Salamatu é isso, ou pretende ser isso, areia, um grão de areia, na máquina.
Na sua biografia, Thalámas Salamatu, diz que ganha a vida de abaixo, trabalha numa cooperativa cultural. Este livro começa com uma citação de Louis Aragon: escreve-se para destruir um mundo, não para o construir. Como se complementam estas atividades?
Apontava o Daniil Kharms “um poema deve partir uma janela”. Através dos vidros quebrados pode entrar o ar fresco. De construir sobre o feito, de construir sobre o já construído, de ir fazendo, de tratar de melhorar algo que no fundo sabemos que não se pode melhorar, por desgraça, sabemos muito neste país. Quando o construído é um espaço húmido, frio, hostil, não há nada mais inteligente, decidido, que o destruir, deitar tudo abaixo e pensar o novo. Isto serve tanto para uma casa, para os espaços partidários, como para o real.
Como vives o reintegracionismo?
Eu vejo o reintegracionismo mais como uma estratégia para a língua, mais do que uma norma para a língua. Entendo que o reintegracionista não nasce, faz-se. E cada uma faz o seu caminho como pode. Quando andamos pelo país e fazemos escuta atenta, surpreendemo-nos amiúdo de palavras, giros linguísticos, que não é que não sejam nossos, mas que nos fizeram ver que não os eram. Esse capital linguístico aproxima-nos a um espaço comum.
Há dúvidas, claro que há, sempre há uma primeira vez para escrever Rianjo com j. E treme a mão, mas saber que abres a porta certa, faz com que escrevas esse j. Rachas muitos preconceitos, muitas ideias herdadas.
No meu percurso, eu não posso esquecer que as línguas não são elementos neutrais, que evoluem influenciados pelos contextos históricos. E se reconhecemos a presença do conflito no evoluir da nossa história e da língua, se temos presente que a história da nossa língua é uma história de renúncia, de renúncia às palavras, pois a mim isso leva-me a este espaço. Para mim ser reintegracionista é, também, um jeito de dizer "o meu nome é Kunta Kinte".
+ Mais info:
- Ficha de Prédios na loja em linha Imperdível
- 'Valle-Inclán lusófilo: documentos (1900-1936)' e 'Prédios', novidades da Através | Editora
- Lançamento de "Prédios" de Thalámas Salamatu em Compostela
- Através | Editora apresenta em Redondela o novo poemário de Thalámas Salamatu [PGL, 08 de janeiro de 2014]