Entrevista a Ramiro Barros, autor de Léxico de Cotobade

"Não demorei em compreender que as pessoas que aprendemos a ler, dificilmente podemos recuperar o sentido do que as palavras significam para aqueles que só se comunicam verbalmente"

Terça, 31 Dezembro 2013 00:00

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PGL - Ramiro Barros Justo acaba de editar o livro Vocabulário Ilustrado da Terra de Cotobade, onde se debruça sobre o léxico e a fraseologia desta pequena comunidade rural. As palavras de um mundo extinto alternam com as que nos últimos 50 anos foram banidas pelo desapego à paisagem e a brutal erosão do espanhol. Para além de itens lexicais, inclui um grande número de ilustrativas lâminas temáticas (as ervas medicinais, a casa, o corpo, os insetos, os brinquedos, a vaca, o linho, a roupa, ferramenta de cantaria, etc. ).

Ramiro, que foi o que te motivou a escrever este livro?

Realmente quando com 13 anos comecei com o apontamento das palavras "estranhas" que eu ouvia no âmbito familiar, jamais imaginei que algum dia me veria no aperto de ter que redigir um "dicionário". A ideia de realizar este trabalho toma apenas forma na minha cabeça quando em 2009, depois de arrumar o conteúdo de inúmeras entrevistas de campo, deparei na ingente quantidade de material lexicográfico coligido. Pode-se dizer que o livro é o primeiro resultado -inesperado- de vários anos de inquéritos etnográficos no torrão dos meus antepassados.

Desde que a ideia surge na tua cabeça até a conformação final, como foi o processo de criação?

Para além das entrevistas formais, quase todas as locuções e frases feitas, o mesmo que uma alta percentagem do vocabulário (nomeadamente o léxico concernente às relações humanas) é fruto dos mais de vinte anos de escuta ativa fornecidos por uma dilatada experiência vital em Cotobade e entre cotobadenses. Por outro lado, para a recolha de termos da cultura material (petrechos agrícolas, peças do moinho, do carro do país, do forno, do canastro etc.) contou-se com a participação de 110 alunos das escolas de ensino primário do município. Com posterioridade às entrevistas de campo, realizou-se também uma pesquisa bibliográfica que se tornou especialmente fecunda na obra de alguns estudiosos cotobadenses, como o egrégio Antonio Fraguas. Finalmente, na fase de elaboração do Vocabulário, com o afã de acrescentar, corrigir e aperfeiçoar algumas entradas, recorri à ajuda dos amigos A. Casal e G. Fortes (dois historiadores locais).

Quanto tempo demoraste na compilação de informação?

Centrando-nos nas entrevistas, que foram sem dúvida a minha principal fonte de informação e, tendo em conta que a sua finalidade cardinal não foi a obtenção de léxico, mas o conhecimento do passado recente deste território, o tempo empregado na sua realização não deve ser tomado como exclusivo do trabalho aludido.

A cronologia dos inquéritos pode-se dividir em dois estágios: um inicial (1993 a 1995) no qual se realizam várias entrevistas sobre os cultivos, o pão e a moagem, com destino a uma publicação acerca dos moinhos hidráulicos -Barros Justo 1997-; e outro muito mais produtivo (1998 a 2003) no qual o trabalho se sistematiza, alargando o temário e a área abrangida.

 

 

Como foi a experiência do trabalho de campo?

Considero-me uma pessoa muito afortunada pela vida me ter dado a oportunidade de conhecer as derradeiras gerações de galegos criadas nos valores da nossa cultura tradicional. As incontáveis horas de conversa com as/os velhas/os (nascidos mormente na década de 1920) que viveram toda ou grande parte da sua vida apegados à sua terra natal, revelou-se uma reveladora lição de humanidade que guardarei como um tesouro até o fim da vida. Percorrer as veredas mil vezes pisadas pelos do meu próprio sangue, tornou-se para mim numa emocionante viagem de descoberta, pois nela achei muitas das respostas ausente dos livros de história ao mesmo tempo que se me desvelava o passado íntimo da minha gente. Além do mais, o facto de ser apercebido como um membro da comunidade, facilitou-me tanto a escolha dos informantes como a consecução da sua confiança.

No decurso das entrevistas fui logo seduzido pela empatia e subjetividade próprias das culturas orais, e não demorei em compreender que, as pessoas que aprendemos a ler, dificilmente podemos recuperar o sentido do que as palavras significam para aqueles que só se comunicam verbalmente. Igualmente, descobri como o território é realmente capaz de modelar a língua, e que a diversificação é a tendência natural da fala não interferida pelo sistema. E aos poucos, fui-me apercebendo de que as radicais mudanças acontecidas durante as últimas décadas no seio da nossa comunidade rural, não se tinham apenas traduzido na perda de um feixe de nomes de velhos utensílios, mas também no progressivo esmorecimento de toda uma forma de expressão baseada na contínua interrelação dos indivíduos com a sua reduzida paisagem vital.

Após a recolha do material todo, quão de complicada foi a organização do mesmo?

Durante os seis anos nos quais intensifiquei o trabalho de campo, este não se limitou aos inquéritos, mas também à catalogação da cultura material através do desenho e a fotografia. É por isto que demorei outros seis na organização e peneira de todo o material coligido, e só então comecei a trabalhar sobre ele.

No que atinge unicamente às entrevistas formais, foram um total de 128 informadores, 102 inquéritos e perto de 400 horas de conversas, o que unido ao seu caráter politemático, delongou o processo de arrumação. O léxico foi-se introduzindo na base do Vocabulário durante a digitação das entrevistas e à medida que este aparecia. A minha falta de formação linguística tornou-se na altura num grande entrave que me obrigou a afrouxar muito o ritmo do trabalho com contínuas consultas bibliográficas. Finalmente, foram três anos os que demorei em organizar todo o material léxico, não sem várias mudanças de critério e mesmo alguma tentativa de abandono. Porém, em todo o momento contei com a ajuda da Sra Pura Moreira de Almofrei, mulher que entesoura grande conhecimento da sua/nossa Terra e que, generosamente, esteve preste a ler e corrigir tudo quanto eu lhe passei.

Este tipo de livros apresenta vários exemplos na Galiza e em Portugal. Serviram-te de modelo de alguma maneira? Ou talvez de anti-modelo?

A maioria das monografias lexicográficas de caráter local não veem a luz na Galiza até a década de 1970, da mão da recém-criada cátedra de galego-português da Universidade de Santiago (Ribeira de Piquim, Ogrove, Compostela etc.). Anos depois iriam-se publicando alguns outros e ficando muitos inéditos nos arquivos da faculdade de filologia. Em Portugal estes estudos levavam umas décadas esquecidos e nos últimos anos vêm de sair a lume vários dicionários centrados nas falas regionais de Trás-os-Montes, Alto Douro, Beiras e Alentejo.

Como é lógico, a maioria destes trabalhos foram-me muito úteis à hora de contrastar termos, mesmo de jeito fácil por estarem alguns incluídos no Dicionario de dicionarios da lingua galega em linha. Mas fora disso, o meu Vocabulário foge destes modelos que, em geral, tentam recolher o léxico todo e não só o desusado, apresentam sucintas definições –amiúde equivalentes do espanhol-, não incluem apontamentos fonéticos, exemplos de uso, fraseologia, etc. À hora de definir os lemas, o meu farol foi o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, uma magnífica obra lexicográfica que oferece as explicações semânticas acompanhando os preceitos do conhecimento científico e não apenas usando sinónimos. Aliás, a maior peculiaridade do meu trabalho, para além de incluir ilustrações e usar uma grafia histórico-foneticista, reside talvez na minuciosidade da coleta, incorporando grande quantidade de sinónimos e variantes diatópicas que oferecem uma surpreendente paisagem lexical sobre um território de só 147 km² (por ex.: 12 nomes para a Mantis religiosa, 9 nomes para Ruscus aculeatus, 8 nomes para Orioulus oriolus, 31 sinónimos para o adjetivo vadia, etc.).

 

 

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