Alva Martínez Teixeiro: «No âmbito português e brasileiro, quando sabem que sou galega, o comentário mais habitual é "mas és quase portuguesa"»

Recentemente publicou Nenhum Vestígio de Impureza, sobre a obra de Sophia de Mello Breyner Andresen

Segunda, 23 Dezembro 2013 10:53

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PGL - Alva Martínez Teixeiro é a autora de Nenhum Vestígio de Impureza, editado pola Laiovento e que se debruça sobre a obra de Sophia de Mello Breyner Andresen que, segundo indica no próprio volume, “representa uma das vias possíveis de retorno à pura necessidade intelectual de beleza, verdade e sabedoria”. A autora fala-nos não apenas da obra como da sua experiência na Universidade de Lisboa e em Rabat, onde leciona Estudos Portugueses.

Tens numerosas publicações feitas e de âmbitos diferentes, por onde transita o teu interesse investigador na atualidade?

Ultimamente, tenho vindo a desenvolver investigação no âmbito dos estudos brasileiros, nomeadamente, os estudos interartísticos e as questões de literatura e identidade. Nestes momentos estou a estudar obras e autores que privilegiam o cruzamento de propostas artísticas e de pensamento de diferente natureza, como os literários, os pictóricos e os filosóficos. Igualmente, de maneira complementar, estou particularmente interessada na escrita dos autores brasileiros de origem árabe, embora continue, evidentemente, a interessar-me (muito) como leitora pelas literaturas galega e portuguesa, mais em concreto, pelas suas manifestações contemporâneas.

Vens de publicar na Laiovento o ensaio Nenhum vestígio de impureza. Que vai encontrar o leitor nesta tua última obra?

Nos últimos tempos, está a produzir-se, por um lado, uma intensificação no processo de divulgação e/ou no conhecimento da obra andreseniana, tanto no âmbito dos países de língua portuguesa, quanto no alargamento da difusão internacional da mesma segundo uma nova conceção. Nesta linha de pensamento, o objetivo geral que persegui neste ensaio foi o de dar a conhecer (de maneira mais aprofundada) a escrita de Sophia de Mello Breyner Andresen, figura central e basilar na poesia portuguesa do século XX.

Neste sentido de (re)descoberta plena da sua escrita complexa e plural, o leitor vai encontrar no ensaio a consensual admiração perante a palavra e o retorno poéticos à pura necessidade intelectual de beleza, verdade e sabedoria, absolutamente diferentes dos standards estéticos da sua época. Porém, encontrará também –e isto é relativamente novidoso– o espanto perante a obscuridade que se percebe sob a superfície luminosa da sua obra, ligada aos temas da consciência da quebra da unidade com o ideal ou da superficialidade e da pobreza espiritual do mundo
contemporâneo.

Enfim, nas páginas do livro procurei explorar as diferentes possibilidades de interpretação desta obra paradoxal, com base no claro-escuro, para demonstrar a verdadeira dimensão da sua exigência de esclarecimento, a partir da oposição contra qualquer forma de mistificação ontológica e/ou moral, como a indiferença, a alienação, a mentira ou a injustiça.

Traduziste um livro brasileiro para o galego ILG-RAG. Em que medida pensas que é necessária a tradução de materiais dentro do intersistema?

Eu traduzi, há algum tempo, um romance português para o galego ILG-RAG e, francamente, essa experiência –meramente 'alimentar'– demonstrou-me aquilo que já sabia: o caráter desnecessário desse tipo de translação, pois foi um exercício supérfluo e, portanto, escusado. A partir desse momento, não fiz qualquer outro trabalho de tradução desse teor. Acredito que acrescentar um glossário –no caso de ser necessário para esclarecer vocabulário complexo, próprio, local e/ou nacional, como acontece, por exemplo, nas edições portuguesas das obras de certos autores brasileiros ou africanos como Guimarães Rosa ou Luandino Vieira– é suficiente para que qualquer leitor atento da Galiza consiga ler obras portuguesas, brasileiras ou africanas escritas em língua portuguesa.

Investigas principalmente sobre literatura brasileira e estás a trabalhar para uma Universidade portuguesa, como é o mundo académico português e brasileiro nos olhos de uma galega?

A dizer verdade, é certo que há diferenças de pormenor –por exemplo, a maior formalidade académica nas universidades portuguesas a respeito da maneira descontraída e aconchegante das brasileiras–, mas no essencial, trata-se de meios muito semelhantes.

E da ótica oposta, como é que vem a Galiza nesse âmbito?

De modo geral, não existe um conhecimento muito aprofundado quanto à Galiza, mas há um certo sentido de proximidade, de facto, quando as pessoas sabem que sou galega, o comentário mais habitual que ouço é "Ah! Mas és quase portuguesa"…

Desde este ponto de vista, procuro aproveitar todas as oportunidades possíveis –e escassas– de divulgação da cultura galega entre os alunos de literatura e cultura brasileira, por exemplo, estabelecendo comparações entre o processo de formação da identidade brasileira e o processo de (re)construção da nossa identidade nacional nas aulas de Literatura do Século XIX ou, ao falar do 'Orientalismo' na literatura ocidental, referindo a figura de Cunqueiro ao lado de Borges, pois, se um dos alunos procura um livro de Cunqueiro na biblioteca da faculdade –aliás, uma biblioteca razoavelmente bem dotada de bibliografia galega–, já terá valido a pena.

A Universidade de Lisboa tem um protocolo com a Universidade de Rabat que derivou em estares a lecionar atualmente na capital marroquina. Como está a correr a experiência?

O protocolo com a Universidade de Rabat para auxiliar nestes primeiros anos em que está a começar lá o primeiro curso de Estudos Portugueses do mundo árabe constitui uma iniciativa muito feliz. Neste sentido, o trabalho está a dar frutos, e a esse protocolo se deve haver um grupo de jovens que estão a abrir horizontes, a diversificar as fontes de conhecimento e a participar na abertura da sociedade marroquina: este ano, por exemplo, temos nos mestrados da faculdade quatro alunos da Universidade de Rabat e outros quatro (um deles doutorou-se agora) vieram fazer o Curso de Verão.

No plano concreto –e mais pessoal–, dar aulas em Marrocos de Literatura Brasileira é toda uma experiência: no ano passado, o primeiro aluno que conheci da turma unicamente lera Manuel Bandeira (porque algum professor tinha deixado um livro dele na Biblioteca da Faculdade)– que adorava, como é natural, pois é um dos maiores poetas do Brasil do século XX –e Paulo Coelho– que detestava, como, ao meu ver, também é natural. Este aluno, portanto, tinha uma visão bem extravagante da literatura e da cultura do Brasil contemporâneo… Esta anedota exemplifica muito bem como, às vezes, resulta um bocado difícil ultrapassar a distância cultural (nomeadamente, no que diz respeito aos referentes culturais) que nos separa. No entanto, tenho comprovado como é altamente ‘funcional’ e produtiva a 'adaptação ao meio', nomeadamente, estabelecendo analogias entre o Brasil e Marrocos (antigas colónias da Europa), abordando o tema da influência africana na formação da cultura brasileira ou através da incorporação de obras e autores que reelaboram e atualizam em moldes latino-americanos a cultura e a identidade árabe –basicamente, fixada no literário pelos escritores descendentes dos emigrantes sírio-libaneses.

Além disso, afinal, nestes dois anos tenho aprendido eu mais com eles do que eles comigo, a respeito, por exemplo, da forte identidade africana que os liga ao resto do continente ou de um singular 'mal-entendido' cultural entre Oriente e Ocidente: enquanto os árabes se consideram primeiramente 'o' povo poeta, nós, europeus, os reconhecemos como 'os' narradores, por causa do 'complexo das Mil e uma noites'…