Fernando Venâncio: "O ponto de partida histórico foi semelhante, com a Galiza e a Flandres medievais a darem cartas, ambas, no seu espaço linguístico. Mas a história posterior, e a situação actual, oferecem poucos paralelos"

Segunda, 14 Outubro 2013 00:00

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Valentim Fagim (*) - Fernando Venâncio é um dos autores de Quem fala a minha língua?, o livro que reúne vários contextos sociolinguísticos onde esta pergunta não recolhe uma resposta unívoca. Com O neerlandês, idioma de flamengos e holandeses, o autor ilustra-nos sobre um contexto da área germânica.

Um ponto comum entre o espaço neerlandês e o espaço galego-português é que foi na Galiza e na Flandres, ambas residentes na categoria de não-estados, onde a literatura medieval mais intensamente floriu. A irrupção do francês na Flandres foi comparável à do castelhano na Galiza? Chegou a se perder a consciência de compartilhar uma língua com a Holanda?

De facto, tanto a Galiza como a Flandres foram, na Idade Média, centros irradiadores da cultura e da economia. Produziram ambas uma excelente literatura, ambas foram economicamente desenvolvidas e, sem surpresa, eram fortes centros de poder. A diferença vem depois, na história posterior. Enquanto a Galiza, dominada por Castela, iria perder em todas as frentes, a Flandres continuou a ser (com uma interrupção entre 1830 e 1950) uma das regiões económicas mais importantes do Noroeste europeu, e conservou-se, até hoje, um foco primacial da cultura neerlandesa.

Também a relação com os idiomas vizinhos apresenta diferenças. Na Galiza, o castelhano foi conquistando o espaço social e cultural, enquanto o galego passava à clandestinidade e, na melhor hipótese, ao folclore peninsular das personagens teatrais 'galegas' e dos vilancicos 'galegos' de Natal. O Ressurgimento oitocentista foi, decerto, fundamental para a cultura galega. Mas ainda em pleno século XX a única literatura nela produzida e celebrizada internacionalmente (Portugal incluído) era de língua castelhana.

Na Flandres, o idioma foi sempre hegemónico na cultura. Deste modo, linguistas e intelectuais flamengos tiveram um contributo de primeira ordem na feitura, em 1635, duma norma-padrão, o «neerlandês». Nasceu como uma solução de compromisso, uma 'norma franca', que permitia, desde o sul da Flandres ao norte da Holanda, a fluida comunicação entre dialectos afins, mas mutuamente incompreensíveis. De resto, este cenário dialectal mantém-se (e nem falamos das várias línguas regionais na Holanda), sendo prática comum os cidadãos decidirem como exprimir-se, numa conversa privada, à mesa de família, numa reunião: se na norma-padrão ou no dialecto. Tenha-se também isto em atenção: o nome do idioma, «Nederlands» refere-se, não à actual Nederland (o Reino da Holanda), mas às «Nederlanden», as Terras Baixas, o conjunto geográfico e linguístico a que a Flandres sempre pertenceu. Nunca a fronteira política foi sentida como fronteira linguística.

É importante lembrar, igualmente, que, nos conflitos linguísticos belgas, alguns deles graves, jamais a Flandres fez apelo, ou sequer pediu solidariedade, à Holanda. Esses conflitos foram sempre um assunto belga estritamente interno. Politicamente, a Flandres preza, acima de tudo, a sua soberania. Nem sempre a Holanda o entendeu. Em inícios de Oitocentos, foi criado, com a conivência britânica, o Reino Unido das 'Nederlanden', sob um rei holandês. Isto custou caro aos flamengos. A posterior criação duma Bélgica dominada por francófonos foi a resposta a esse irredentista 'brincar aos países'.

Como se produziu o despertar flamengo? Como se passou de um código restrito às classes populares a uma língua nacional capaz de substituir o francês como língua «a» no território flamengo?

A partir de 1830, com a fundação do Estado belga, a região da Valónia, francófona, dominou política e economicamente o novo país. A sua capital, Bruxelas, em pleno território flamengo, viu a língua francesa tornar-se dominante. Na Flandres, o francês invadiu áreas tradicionalmente neerlandesas, como o comércio, a imprensa diária, o ensino superior e até a escolarização. Nas altas esferas sociais flamengas, já desde o século XVIII o francês era 'chique', como aliás na própria Holanda. Não obstante tudo isso, a cultura flamenga continuou a exprimir-se em neerlandês e os contactos culturais com a Holanda permaneceram firmes. A produção literária flamenga – ficção, poesia, ensaio – conservou-se activa, e era vastamente consumida.

Um «despertar flamengo», como o do século XX, foi, portanto, de mera natureza sociolinguística. As elites económicas, que se tinham passado ao francês, foram regressando ao neerlandês. Nisso teve decisiva importância o facto de os flamengos serem, em geral, excelentes bilingues, ao contrário dos valões, que só dominavam o próprio idioma. Não houve, pois, nenhum «despertar flamengo» linguístico. Na Flandres, co-criadora da norma-padrão, sempre o neerlandês se conservou vivo, como língua da população em geral e das elites culturais.

Certo: o francês influiu, e influi ainda, na linguagem diária flamenga. É a fatal situação dos bilingues após um estado de diglossia social. Mas, atenção. Por estranho que pareça, a linguagem holandesa 'culta' serve-se, hoje, de mais galicismos do que a da Flandres, onde uma tendência diferencialista foi sempre forte. Os tradutores flamengos para neerlandês, que são os melhores, mas ao serviço dos grandes grupos editoriais holandeses, queixam-se de serem obrigados a um léxico que sinceramente detestam. Os flamengos evitam, mais que os holandeses, os galicismos 'cultos', preferindo, por exemplo, privaat a privé, omloop a circuit, verdeler a distributeur, o que o holandês médio tem na conta de provincianismo.

Como é gerido o padrão do neerlandês? Em que variedades se baseia e que instituições o modelam?

Na norma-padrão criada em 1635 entrou farto léxico flamengo, que assim se generalizou a todo o território linguístico. No entanto, algum desse léxico, ainda hoje corrente na Flandres, é sentido na Holanda como antiquado, ou exótico, ou excessivamente culto.

O padrão do neerlandês é gerido, de comum acordo, por holandeses e flamengos. Para isso foi instituído um órgão transnacional, a União Linguística Neerlandesa ('Nederlandse Taalunie'), tutelada pelos governos da Holanda e da Flandres. A cada dez anos, a Taalunie publica o chamado Livrinho Verde ('Het groene boekje'), que admite novas palavras no idioma e faz ajustes na ortografia geral. A essas normas obedece o dicionário Van Dale, considerado, nos dois países, a referência para a escrita institucional, do ensino e dos meios de comunicação. Tanto o 'Livrinho' como o dicionário reflectem a linguagem corrente, culta ou popular, num país e no noutro. Os materiais flamengos vêm, sim, indicados como 'Belgisch-Nederlands', sendo os holandeses os não-marcados. Houve, num passado recente, tentativas flamengas duma ortografia mais genuína, isto é, menos 'francesa', mas a parte holandesa considerou-a um excesso purista. Deste modo, claxon ou abat-jour nunca se tornaram klakson e abazjoer.

Em que medida existe um consumo cultural recíproco entre os membros de cada uma das nações?

O contacto cultural, já secular, e a todos os níveis, entre holandeses e flamengos torna natural, e mesmo óbvio, o intercâmbio de iniciativas: edição de obras de divulgação, promoção internacional de obras literárias, programas televisivos (como o 'Grande ditado da língua neerlandesa', um acontecimento anual, em que os participante flamengos costumam destacar-se), e ainda a crítica literária, frequentemente conjunta. Também os principais prémios literários são geridos pelas duas comunidades.

Que pode achar de interessante um cidadão/cidadã galega na leitura do seu artigo?

O ponto de partida histórico foi semelhante, com a Galiza e a Flandres medievais a darem cartas, ambas, no seu espaço linguístico. Mas a história posterior, e a situação actual, oferecem poucos paralelos. Na realidade, só vejo um: a desafeição face a uma língua próxima e influente, o castelhano e o francês, respectivamente. Mas a relação mais importante, aquela que os dois países estabelecem com os vizinhos, Portugal ou a Holanda, essa relação não pode comparar-se.

A nossa situação real é esta: a Galiza continua a ser, no cenário mental português, uma desconhecida. Já noutros lugares dei exemplos da sistemática negação da Galiza na actual auto-imagem portuguesa, quer histórica, quer cultural, quer linguística. Temos de reconhecê-lo: o tempo de Lapa, de Cintra, de Agostinho da Silva, de Jacinto do Prado Coelho, isto é, os anos de 1980, esse tempo passou. Neste momento, na opinião culta portuguesa, a Galiza não é referência para nada de decisivo. Existe, é certo, um activo intercâmbio universitário na investigação cultural e linguística. Mas, mesmo aí, é débil a noção, e mais ainda a afirmação, duma 'pertença', real e actuante, a um conjunto linguístico ou cultural comum. Esta é a realidade, não vale a pena enganarmo-nos.

Mas há mais. Toda a história linguística portuguesa é a dum afastamento do galego. A norma-padrão portuguesa é o produto dum longo processo de desgaleguização, em que as características nortenhas – fonológicas, lexicais, morfológicas – foram sistematicamente filtradas. Dispomos ainda, é verdade, dum enorme acervo comum de materiais exclusivos galego-portugueses. Mas a própria consciência deste facto é ténue. Como é ténue a consciência dessoutro facto, espectacular em termos europeus, duma quase perfeita intercompreensão ao longo dos 700 km da faixa ocidental peninsular. Perante tudo isto, uma coisa parece evidente: é preciso deitar fora os mitos aconchegantes, os 'espíritos de cruzada', os preguiçosos slogans, e recomeçar humildemente do zero, aceitando que, para a opinião portuguesa, mesmo cultivada, uma mensagem como «A nossa língua está ameaçada na Galiza» é simplesmente opaca. Para um português, nas relações Portugal-Galiza, muito pouco é óbvio, muito pouco é motivante.

Que formas deveria tomar essa tarefa, dirigida a Portugal?

Importa, primeiro, traçar uma estratégia de progressiva conquista da opinião 'culta' portuguesa: o jornalismo cultural, o professorado, a edição, os agentes culturais, os meios de comunicação. Eles seriam cativados para integrarem, na sua auto-imagem, essa afinidade única que Portugal e a Galiza têm no passado histórico, na génese cultural, no idioma.

Deveria iniciar-se, depois, um processo de informação. O cidadão português deveria progressivamente a) distinguir a Galiza no conjunto de Espanha, b) admitir que a língua desse território não é o espanhol, c) que essa língua é muito próxima do português, e d) que, segundo numerosas opiniões, o português e essa língua são a mesma. Em cenário português, semelhante processo de consciencialização significaria, cultural e mentalmente, uma autêntica metamorfose.

No terreno institucional linguístico, haverá vários passos a dar no reconhecimento mútuo, mesmo se básico. Seria já um imenso avanço os linguistas portugueses e galegos reconhecerem, agora explicitamente, que galego e português foram, até cerca de 1400, a mesma língua. Existe sobre isso um consenso implícito, mas as opiniões contrárias de dois monstros sagrados, Ramón Lorenzo e Clarinda Maia, continuam a intimidar o sector inteiro. São contudo opiniões, essas duas, oportunistas e insustentáveis, como José António Souto Cabo sabiamente demonstrou, em 1987 e 1988, em artigos na Agália. É, esse, um passo pequeno? Não nos iludamos: sem ele, que já não será fácil, nenhuns outros passos terão sentido.

Última questão, decisiva também: toda essa reabilitação, em Portugal, da memória linguística galego-portuguesa não terá êxito com uns galegos radicalmente divididos, reivindicando exclusivas noções da língua da Galiza. Assentemos nisto: a conquista da opinião cultivada portuguesa é, já de si, uma tarefa precária e exigente. Contra ela, iria sempre levantar-se o forte lobby castelhanófilo português, que saberia, infalivelmente, explorar as discórdias galegas. Na realidade, o êxito só virá quando baseado numa estratégia inventiva, bem construída e impiedosamente realista.

 

(*) Valentim R. Fagim é um dos coordenadores de Quem fala a minha língua?, à venda na Imperdível.

 

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