Jairo Dorado: «Salvo no caso do montenegrino, na ex-Jugoslávia não falaria de construção filológica, mas de intromissão política em questões filológicas»
Quinta, 18 Julho 2013 07:24

Jairo Dorado é um dos autores de Quem fala a minha língua?, novidade da ATRAVÉS
Valentim Fagim (*) - Jairo Dorado é um dos autores de Quem fala a minha língua?, o livro que reúne vários contextos sócio-linguísticos onde esta pergunta não recolhe uma resposta unívoca. Com «Herdeiros ou antepassados: o servo-croata e a ex-Jugoslávia», o autor ilustra-nos sobre língua e identidade no tal espaço eslavo. O livro será lançado no Festigal, dia 25, às 21h30 contando com a presença do próprio Jairo Dorado e de Carmen Alén, especialista sobre o occitano.
Como surgiu no espaço balcânico a vontade de “uma língua comum” e que possibilitou a sua eclosão?
Foi um processo paulatino e fornecido por fontes diversas. Começa no século XIX pela influência do “ilirismo” uma variedade local do pan-eslavismo, tudo isto no contexto do romantismo. Coerentemente há uma escolha da variedade dialetal sobre a que assentar a língua padrão dos croatas (dentro das três possibilidades existentes) que coincide com a única variedade dialetal de Sérvia e que era também a base da estandardização da língua sérvia. Além disso, há uma motivação política: a unificação dos povos eslavos do sul, bem dentro bem fora do Império Austro-húngaro e que fornece uma escolha unitária.
No teu artigo afirmas que esta vontade há tempos que se extinguiu. Foi apenas a guerra o “combustível” deste processo desintegrador?
Não, as diferenças existem mesmo no momento da escolha normativa. Tanto é assim que não houve acordo sobre a denominação oficial da língua ate já 1955. Foram divergências ideológicas e atitudes políticas desde 1918 as que foram acrescentando uma fenda que sempre existiu. A guerra dos anos 90 empregou a língua como uma de muitas bandeiras, mas no máximo só forneceu uma perspetiva legalista para uma disputa já existente. É curioso também observarmos que originalmente os croatas eram quem mais defendiam um modelo unitário da língua, que posteriormente foram os sérvios os que defendiam outro modelo unitário mas que, chegada a guerra, politicamente, ninguém já fazia tal.
Em 1990, o linguista occitano Patrick Sauzet afirmava que “La grafia és mai que la grafia”. Isto parece evidente nos usos ortográficos de croatas e sérvios. Que há detrás das escolhas ortográficas de ambas as comunidades?
Há uma interpretação histórica da evolução “factível” da língua. O croata, que sempre é associado ao alfabeto latino, tem uma parte fundamental da sua história escrito em alfabeto glagolítico e cirílico além do latino. O alfabeto cirílico sérvio é a modernização feita por Vuk Karadžić do cirílico do eslavo eclesiástico apenas em 1818 e foi duramente criticado porque se afastava da igreja e da Rússia.. e a sua oficialização só chegaria em 1876. O bósnio teve um uso amplo em aljamiado, algo coerente no contexto Otomano. Politicamente é uma simplificação histórica que hoje em dia é empregada como elemento de identidade hiperlinguística e até certo ponto da própria autoidentidade geopolítica, ao associarem esses alfabetos alguns elementos ideológicos a Ocidente ou oriente quando essas associações, em rigor, são espúrias no contexto histórico local. Politicamente falando, a afirmação de Sauzet é lógica, mas linguisticamente falando não o é. Sociolinguisticamente pode ser ambas.
Hoje existem 4 línguas herdeiras do servo-croata: croata, sérvio, montenegrino e bósnio. Como está a ser a construção, em temos filológicos, das línguas montenegrina e bósnia?
Pessoalmente não falaria –exceto no caso do montenegrino- de construção filológica senão de intromissão política em questões filológicas. Há que entender que o servo-croata (por sinal, também chamado oficialmente croata-sérvio) era em essência uma norma que permitia soluções que são hoje exclusivamente sérvias ou croatas. Em certo modo houve uma “restrição” normativa e uma “exagero” das tradições filológicas próprias. Assim, o croata –por influência do checo dentro do Império Austro-húngaro- tem uma tradição léxica neologista e o sérvio recorre mais aos calques léxicos já que não teve uma posição de subordinação com respeito a línguas “oficiais” no século XIX (a diferença do croata com respeito do alemão ou do húngaro). Em certo modo não pode haver um termo médio e estas escolhas são levadas ao extremo, impossibilitando qualquer opção “impura” com a tradição própria e provocando às vezes uma hipercorreção marcadamente política e sempre com referência ao “vizinho”. Isto provoca que línguas “normalizadas” no uso tenham problemas “normativos” que as achegam mais às línguas “menorizadas” de uma perspetiva sociolinguística.
O caso do montenegrino é peculiar e sim é possível falarmos de construção; assim, a publicação das normas em julho de 2009 provocou a aparição de novos grafemas e consequentemente a imposição de uma gramática a partir de uma posição nova e diferente cujos resultados ainda estão por ver. Pessoalmente penso que terá de passar uma geração para analisarmos o seu êxito. E outra curiosidade: Montenegro é provavelmente, de uma perspetiva histórica, o estado que sofreu menos mudanças políticas na região, uma contradição para os que defendam a relação entre estado “histórico” com língua padronizada.
Existe um consumo cultural recíproco entre os membros de cada uma das comunidades linguísticas?
Sim, mais acho que os canais não são sempre os oficiais e às vezes é um consumo atemporal. É dizer, por uma parte há que ter presente que dentro do estado comum houve produção cultural própria, parte da qual as duas comunidades consideram de eles, provocando fortes debates nalguns casos, como o do Nobel Ivo Andrić. Pela outra, há que ter presente a força que tem a cultural popular e não oficial, incluindo também a subversiva, entendendo como tal a que nenhuma das partes aprecia, e a cultura underground, mais solvente nos intercâmbios culturais ao não ter dependência. Mas também há produção cultural exportada como alheia e percebida como tal, além da produção cultural misturada, a que mostra elementos das duas realidades.
O problema linguístico é latente quando há um uso da norma escrita, bem seja nos livros, bem seja na legendagem. A norma tem sempre um caráter oficial e consequentemente implica uma legislação de uso que limita o consumo cultural “escrito” recíproco. A aplicação dessas restrições à oralidade há de depender sempre do nível de conservadorismo político e consequentemente identitário.
A Bósnia apresenta um caso invulgar dado que na sua geografia convivem legalmente três línguas “herdeiras”: croata, sérvio e bósnio. Como é a gestão deste processo?
O uso escrito oficial das três línguas é real, é dizer, toda a documentação oficial está nas três línguas e é acessível. Isto é interessante se entendemos que é uma língua pluricêntrica –e no caso da Bósnia e Herzegovina parece ser mui factível esta perceção- porque acho que seria um raro caso –teórico- de três normativas em uso parelho; na prática não é assim porque houve de facto uma consolidação da limpeza étnica na maior parte do país.
Fora da administração muda tudo e quase podemos falar de um uso individual da preferência linguística atendendo à identificação nacional. Eu gosto de falar de “code-switching étnico” já que fora dos contextos coloquiais é onde se pode observar –a maior parte das vezes- a preferência por uma ou outra língua como marcação identitária, relaxando o uso quotidiano as variedades “não normativas” da língua –se é que tal cousa existisse.
Este não é, porém, uma situação inovadora mas –mais uma vez- uma repetição do passado já que ao ser historicamente um território multi étnico sempre houve uma associação entre língua e religião (o que evolucionaria durante o século XIX e XX a identidade tal e como a conhecemos hoje), estando a língua “culta” de uma pessoa relacionada com a sua pertença religiosa: já fosse o árabe, o eslavo eclesiástico, o latim... e a influência que estas tivessem no raro uso escrito da variedade vernácula que empregavam de jeito oral e quotidiano.
Que pode achar de interessante um cidadão/cidadã galega de todos estes processos?
Provavelmente termos uma perceção objetiva e independente das distintas situações linguísticas que existem e que entendamos de facto que às vezes há semelhanças com o nosso caso mas que, se existirem, nem são totais nem são equiparáveis porque cada caso é o resultado de uma serie de fatores alheios parcial ou totalmente, direta ou indiretamente. E isto tem uma aplicação global além da visão linguística aqui expressada.
No caso específico da ex-Jugoslávia há um componente pessoal e defendo sempre que a visão que há do conflito na Galiza está muito distorcida porque é vista de uma perspetiva ideológica e subjetiva e não independente e objetiva. Como diz o Žižek, a visão dos mal chamados Balcãs é a do subconsciente da Europa.
Todos estes tipos de processos devem ser vistos sempre, sempre, com uma perspetiva independente, não subsidiários bem da nossa realidade, bem da ideologia dominante ou preferente. Observarmos outras realidades de jeito neutral sem preconceitos é o primeiro passo para sermos um dia cultural, social e, sobretudo, politicamente independentes.
Índice do livro
- Introdução, de Valentim Fagim
- Nos limites nordestinos do galego-português europeu: o eonaviego, de Xavier Frias Conde
- O neerlandês, idioma de flamengos e holandeses, de Fernando Venâncio
- Os moldavos: Roménia, Rússia e as políticas de cultura, de Charles King
- O occitano na França : qual e para que usos?, de Carmen Alén Garabato
- Herdeiros ou antepassados: o servo-croata e a ex-Jugoslávia, de Jairo Dorado Cadilla
- O Idioma valenciano. Um caso de individuação linguística num contexto de menorização, de, Miquel Àngel Pradilla Cardona
(*) Co-coordenador do livro.