Festival Literário da Madeira: viagem a uma periferia central (e III)

Terça, 07 Maio 2013 00:00

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PGL - Reproduzimos a seguir a terceira, e derradeira, entrega da crónica de Carlos Quiroga com motivo da sua participaçom no Festival Literário da Madeira. Em anexo pode ser descarregada a crónica completa em formato PDF de quatro páginas.

sábado denso

Carlos Quiroga - 6 Abril. Grande e último dia do Festival. Com muita coragem ainda vou correr (pouco) na orla da costa à primeira hora. Mas às 10:00 estou no Teatro para ver a primeira conversa. A partir de A Arte da Guerra, de Sun Tzu, falam António Scurati, Carlos Vaz Marques, João Luís Barreto Guimarães e Pedro Mexia, moderados por Ricardo Miguel Oliveira. Scurati amaga com falar inglês mas Zink e a plateia reportam a sua escolha ao lindo italiano. Boa mesa.

E quase sem pausa segue a segunda Conversa Cruzada da manhã, A arte da libertação, mote tomado de Krishnamurti. Entram Anselmo Borges, Lídio Araújo, Gina Picart, Tabish Khair, moderados por Sílvio Fernandes. Vai ser a única que perca, esta penúltima, porque tenho dois pendentes incontornáveis e já estou em horas de desconto na ilha: visitar a incomparável Livraria Esperança, agora órfã do seu livreiro Jorge Figueira de Sousa, visitar o Mercado do Funchal que já 20 anos atrás era um festim de frutos e cores. Acabo por conformar-me só ao segundo, pois aparece o Beju e insiste em guiar-nos à Manuela Ribeiro e a mim para comprar algumas frutas –e receber uma ferrada memorável. Na Esperança teríamos sido tomados menos de turistas ingénuos, e os livros até teriam sido mais leves também ao bolso.

Almoço de novo à vista dos iates por trás do Teatro. Mas levanto apressado para ir ao hotel levar a fruta e pegar nos papéis para a minha mesa. De volta o taxista canta-me penas de haver pouco trabalho e ser tudo para uma coisa, primeiro açúcar, depois vinho, agora turismo. O esplendor da cultura sacarina na Madeira acabou com o povoamento do Brasil, país de condições também ímpares para o desenvolvimento da cana. Mas ainda existe um celebrado mel-de-cana madeirense, bom vinho, infinito turismo e realmente muuuito táxi. Eis o problema que não disse para o tipo aquele, que de repente assegura ser do Benfica e pergunta por quem eu torço. Ao dizer Celta de Vigo sem hesitar caí de repente na conta do erro atroz –mas não se vingou especialmente da antiga afrenta!

Estar na última mesa do Festival é grave responsabilidade e eu não sei contar piadas. Custam-me os palcos e assumo isto como uma espécie de dever à Causa. Mas já falara da Galiza na tv e na escola, e o tema da mesa é o tema do planeta neste momento: A arte de pagar as suas dívidas, a partir do mote de Balzac. Acompanham Raquel Varela, Maria do Rosário Pedreira e Rui Zink, modera Carlos Vaz Marques. Preparei para a ocasião um verdadeiro tratado de 'Fenomenologia do Dinheiro' que evidentemente não cabe, assim que falo em segundo lugar resgatando por oral apenas três ideias referidas às sugestões proposta pela organização ("A religião do dinheiro e a lei da necessidade. O dinheiro existe? Quanto vale e o que pode comprar? Estamos a viver uma guerra económica? Haverá alternativa ao capitalismo? Pode o capitalismo procurar o bem comum sem mudar o seu ADN?").

 

Depois leio o primeiro trecho que tudo isto instintivamente me sugerira, uma recordação do meu avô Luís Quiroga, um camponês pobre que na adega da sua casa em Tribás e por baixo de uma arca escondia um estojo metálico com notas de dinheiro. É a primeira vez que numa coisa destas faço um strip-tease sentimental e não estou seguro de ter sido conveniente mas foi o modo de juntar ao intelectual o pátrio. Ocupei mais tempo que o resto de parceiros, e nestas coisas esse é um pecado grave, mas tudo ficou contrabalanceado porque o supremo Rui Zink decidiu pagar a dívida que tem para com Sérgio Godinho cantando a “Etelvina” no fim da sua intervenção. E o público pareceu bem satisfeito da variedade substancial na final conversa cruzada.

E se a Naomi Wolf abrira, encerra-se a programação do Festival com a outra estrela convidada, Zygmunt Bauman, o insigne Sociólogo e pensador nascido na Polónia, em conversa à mesa com o mediático José Rodrigues dos Santos moderada por Diana Pimentel.

No exterior do Teatro recebo presentes de livros, assino assombrado alguns Inxalás de capa dura (eu não tenho exemplares e a editora nunca respondeu mail) e reencontro já para despedidas o Eduardo Pires. Converso um bocado com o João Paulo Cotrim, que por tema e formas me recorda o saudoso Hermínio Monteiro. Outra mediática e glamourosa Paula Moura Pinheiro, que anos atrás me entrevistara na sua mítica e hoje extinta Câmara Clara da RTP2, aproxima-se com a proposta de irmos tomar ponchas. Juntam-se Filipa Leal e Inês Fonseca. Quando atravessam a rua e se lançam para 2 táxis descubro que a proposta não era de tasca ao lado. Quinta da Casa Branca, um lugar belíssimo que já recebeu prémios de arquitectura, era aquilo que por suposto a Paula tinha na cabeça.

desbunda final

Festa de clausura memorável. Levam-nos por estrada para além de Câmara de Lobos à Estalagem da Ponta do Sol. De novo verifico como algumas coisas, apesar de governadas por uma espécie de Fraguinha perpétuo e insular, mudaram bastante e nem sempre para pior: a dupla faixa atravessa agora a paisagem que anoitece salvando as quebradas com facilidade nova. Chegamos e subimos para a Estalagem por uma espécie de elevador que lembra em pequeno o de Salvador da Bahia. O horizonte abre-se ao Atlântico posto aos pés ainda que só crepuscular se adivinhe. Conversas prévias, mojitos, faço ainda um depoimento para a tv que me retarda na incorporação à mesa. Mas tenho sorte e um lugar ao lado do Cotrim e do Vítor Sousa que trabalha na organização do Festival. O Vítor redigira a minha nota biográfica do Programa e já devi então imaginar que o tipo escreve, e bem. O que não podia supor é que tivesse jogado bola contra o Ronaldo e o aturasse uma namorada tão linda! A conversa à mesa com o João Paulo Cotrim, esta vez a comer de verdade, também é promissora de futuras coisas juntos. Enfim, Jam Session com Maggiore e Nuno Filipe e recital poético muito leve.

O meu avião parte às 7 da manhã mas não podia evidentemente pegar nas primeiras levas à capital. Deveu ser a isso das 2 que numa pequena nave de loucos aporto finalmente ao hotel. O João Luís Barreto Guimarães ia singularmente loquaz e festivo, falava castelhano e português à mistura, cantava e celebrava a vida com um gozo nocturno insólito. Ele é cirurgião plástico e de repente lembrei-me doutro encontro em que do banco traseiro do seu carro, em que ele me acolhera para ir ao restaurante, assistira em delírio a uma conversa dele sobre mamas com outro poeta consagrado e também médico, Jorge de Sousa Braga. E é que os poetas às vezes falam de tetas e menos poeticamente do que se imagina. Enfim, o Tabish Khair que ia no meio da carrinha ainda tratou de entender algo de tudo aquilo em inglês mas acabou só por cantar uma canção indiana. Na porta do hotel a Filipa Leal tirou o soutien e iniciamos o rito da sua queima alegórica, que na balbúrdia não sei se na verdade chegou a realizar-se. O chefe da Nova Delphi e do evento, Francesco Valentini, chegou nesse momento com nova leva e apanhou o tumulto à porta do empório. Mas também ele acabou por dançar uma espécie de can-can masculino em simbologia emblemática da noite boémia que se encerrava. Magnífico encerramento de Festival.

[Das duas ou três horas que ainda dormi, do último café no aeroporto com a incomparável para mim alma do evento, Célia Pessegueiro, dos que não tomei mas desejei tomar com a Sara Oliveira felizmente na organização, e quem por certo me deu uma linda prenda de livros raros –como de tantas recordações que torpemente fui digerindo de volta a casa, não cabe naturalmente mais detalhe, ainda que formem parte também da experiência inesquecível]


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