O catalão e o valenciano: uma questão nominal

A conflitividade, convenientemente alimentada  desde as cúpulas políticas valencianas mais conservadoras e  espanholistas, vai acompanhada de uma série  de sintomas sócio-linguísticos muito mais preocupantes

Quinta, 04 Abril 2013 07:46

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Xavier Iglesias i Gallart

Paulo Lema (*) - No passado dia 21 de março, o professor Xavier Iglesias i Gallart (Barcelona, 1966), docente de língua catalã na Universidade do País Basco (UPV-EHU), ministrou a palestra titulada "O valenciano é catalán? Un asunto substantivo".

A atividade, que decorreu na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade de Deusto, foi organizada pela Cátedra de Estudos Galegos com o intuito de complementar os conteúdos desenvolvidos na cadeira Estrutura, História e Sociolinguística da Língua Galega, que faz parte do grau de Línguas Modernas da universidade bilbaina. Destarte, a maior parte do público presente esteve formado por alunos da dita cadeira, embora também assistissem outras pessoas simplesmente atraídas pela temática da dissertação.

O campo de trabalho do professor Iglesias i Gallart acha-se mais bem na literatura catalã contemporânea, mas a problemática do valenciano e da sua posição histórica no espaço catalanófono resulta-lhe igualmente familiar, por se tratar de uma questão muito viva no seu ambiente académico e cultural de origem. Nesta ocasião, o seu tratamento do tema proposto adoptou um formato eminentemente de divulgação, com abundante apoio textual e partindo de uma ideia central repetidamente confirmada pela comunidade científica: a de serem valenciano e catalão duas formas da mesma língua. Este asserto, como facilmente se poderá supor, desperta suspicácias e mesmo sentimentos de rejeição numa ampla porção da sociedade valenciana, o qual converte a denominação da língua e a sua filiação e génese histórica numa questão profundamente conflitiva.

 

 

 

O percurso realizado pelo professor Iglesias i Gallart partiu de uma necessária contextualização histórica, através da qual estabeleceu os principais marcos, dinâmicas e processos que intervieram na configuração do sistema linguístico catalão. Após aceder à condição de língua literária desde como mínimo finais de século XII (com as conhecidas Homilies d'Organyá), o catalão vinculou-se à expansão militar da Coroa de Aragão e assentou em territórios novos como Maiorca e as zonas mais orientais do Reino de Valência (para além de outras áreas mais excêntricas como Alguer, na ilha de Sardenha). Aliás, o professor Iglesias i Gallart mostrou como o mapa dialetal do catalão moderno se corresponde ainda muito bem com a direção desses movimentos expansivos e com as pautas seguidas pelo monarca Jaime I na sua política de repovoação. Seja como for, essa ampliação do território linguístico acarretou aliás um período de esplendor literário em que autores valencianos (como Ausiàs March, Joanet Martorell e outros) salientaram especialmente. De modo análogo ao acontecido com o galego e outras línguas, o catalão iniciou um período de decadência que abrangeu os séculos XVI, XVII e XVIII, e cujas causas foram também externas ao próprio código: deslocamento do poder político, perda de vigor económico e social, castelhanização das elites (sobretudo em Valência) etc. O ponto culminante constituiram-no os Decretos de Nueva Planta, que supuseram o apagamento quase definitivo das liberdades forais de que gozaram historicamente os territórios da Coroa de Aragão.

O movimento de revitalização integral da língua e a cultura catalãs (na nomenclatura da época, lemosin) que supôs a Renaixença patenteia as primeiras diferenças salientáveis entre os diversos territórios catalanófonos, no que diz respeito à receção social de um movimento que alcançou um impacto muito mais fundo em Catalunha do que em Valência. Porém, os avanços no estudo, depuração e fixação do idioma tiveram repercussão nas variedades meridionais: assim, a normativa ortográfica proposta por Pompeu Fabra e pelo Institut d'Estudis Catalans em 1913 (e ainda vigorante na atualidade) serviu como base para a elaboração da primeira proposta de padronização da variedade valenciana: as Normes de Castelló (1932).

Após o trauma da ditadura franquista, o processo de recuperação da língua reiniciou-se, mas a ritmos muito diferentes em Catalunha e em Valência. Enquanto no norte se vai consolidando a perceção do valor social da língua e se generaliza a preocupação pela (ultra)correção lingüística a todos os níveis, a situação revela-se como sensivelmente diferente no sul, onde uma certa classe política começa a pôr as bases da ruptura identitária e conceptual do valenciano a respeito do catalão. O professor Iglesias i Gallart atribui este fenómeno a uma «patrimonialização da língua, folclore e tradições valencianas por parte da burguesia, mais próxima a Madri do que a Barcelona, durante a transição, e uma reação visceral face à progressia que resistira à ditadura». A concretização mais evidente e ilustrativa deste discurso rupturista produz-se mais uma vez no terreno das nomenclaturas: o Estatuto de Autonomia valenciano de 1982 canoniza as denominações de "língua valenciana" e "Comunitat Valenciana". É desde então que o segregacionismo linguístico em Valência, alimentado por um claro ánti-catalanismo político (blaverismo), conseguiu não só virar hegemónico, mas também alcançar extremos tão esquisitos como a tentativa de mudar as normas ortográficas vigorantes (inclusive propondo normativas ortográficas alternativas para concelhos em concreto) ou a difusão de hipóteses linguísticas totalmente carentes de base que visam explicar a origem do valenciano a partir do moçárabe, e sempre desligando-o genética e historicamente das variedades linguísticas setentrionais (catalão). Tal e como demonstrou o professor Iglesias i Gallart, alguns desses despropósitos mesmo conseguiram penetrar (embora muito debilmente) em âmbitos académicos formais.

 

 

Como resulta óbvio, esta conflitividade, convenientemente alimentada desde as cúpulas políticas valencianas mais conservadoras e espanholistas, vai acompanhada (quando não é causa direta) de uma série de sintomas sócio-linguísticos muito mais preocupantes, como o auto-ódio ou a diglossia, que ajudam a compreender a precária situação em que se encontra a língua em Valência. No que às denominações da língua diz respeito, os malabarismos dialéticos que têm de realizar muitas pessoas e instituições para se manterem dentro da "correção política" sem deixar de respeitar o rigor académico e científico observam-se por toda a parte. Por exemplo, o professor Iglesias i Gallart comentou os estatutos da Academia Valenciana de la Lengua, que dedicam um parágrafo inteiro (cheio de circunlóquios e eufemismos) a especificar qual é que vai ser a língua oficial desse organismo. Questões mais sérias, e que despertaram o assombro de boa parte do público assistente à palestra, são as demandas interpostas por parte de associações anti-catalanistas para impedir que o título de Licenciatura em Filologia Catalã seja credencial de possuir conhecimentos de "valenciano" e, portanto, habilite para exercer no sistema educativo valenciano.

No fim de contas, a conclusão a que chegou o professor Iglesias i Gallart não é alheia a qualquer pessoa galega, ou a qualquer utente de uma língua que se encontrar em condições similares à do valenciano com respeito ao catalão: trata-se, basicamente, de uma questão nominal (daí precisamente o título da palestra), uma questão mais social e política do que estritamente académica. A chave deste "assunto substantivo" é o rexeitamento social que suscita uma determinada denominação da língua comum ("catalão"), por entender-se esta como manifestação de intuitos expansionistas, assimilistas ou anexionistas. A exploração política dessa rejeição numa determinada direção ideológica contribui a manter viva a conflitividade que gera este tema.


 


(*) Paulo M. Lema é sócio da AGAL e professor de língua e literatura galegas na Universidade de Deusto (País Basco)