"Santiago de Compostela"
Reproduzimos um texto praticamente inédito do escritor Ndalu de Almeida, Ondjaki, recentemente galardoado com o Prémio José Saramago
Quinta, 07 Novembro 2013 00:00

PGL - A Fundação Círculo de Leitores acaba de anunciar o nome do angolano Ondjaki como distinguido pela 8ª edição do Prémio Literário José Saramago. Para celebrá-lo, no PGL propomos um texto do escritor angolano, "Santiago de Compostela", acompanhado por uma ilustração de Vânia Medeiros e mais uma vídeo-saudação do próprio Ondjaki para os galegos e galegas.
O respeitável galardão bianual foi criado para celebrar a atribuição do Nobel da Literatura em 1998 ao escritor português, que reconhece uma obra literária no domínio da ficção, romance ou novela, escrita em língua portuguesa, por escritor com idade não superior a 35 anos, e cuja primeira edição tenha sido publicada em qualquer país da Lusofonia. O prémio já lançou escritores jovens, hoje consagrados, como Paulo José Miranda, José Luís Peixoto, Adriana Lisboa, Gonçalo M. Tavares, Valter Hugo Mãe, João Tordo ou Andréa del Fuego. Vai agora com o seu valor simbólico e pecuniário de 25 mil euros para um autor que já estava na primeira linha.
Santiago de Compostela
Ondjaki
Chove. Mas devagar.
"Aqui não chove devagar...", diz alguém. Mas cada um tem o seu modo de ler a chuva.
Acumulo noites em mim. Caminho cansado. As costas prendem-se a cada uma destas paredes como se eu pertencesse a todos os cantos. A todas as esquinas.
"Aqui chove devagar", insisto. Falo com alguém que não conheço. Há meses que faço isso. Provoco diálogos absurdos para testar a resistência dos meus interlocutores. Se vejo uma fila, ponho-me nela, espero. Sem saber o quê. Uma fila é um lugar fixo em movimento, se pensarmos bem.
Resulta que esta fila não é uma fila, é um grupo de pessoas muito bem vestidas. Provavelmente um casamento. A vista, tenho-a turva. Com os braços, tento afinal organizar uma fila. Mas sou um elemento perturbador. Ninguém quer estar em fila.
– Mas afinal o que se passa aqui?
– O padre não abre a porta.
– Mas vamos todos entrar? – aqui, sim, tento novamente criar uma ordem na forma de uma fila.
– Todos quem?
– Vocês. Eu. Podíamos entrar por ordem.
– Por ordem?
– Sim. Uns atrás dos outros.
– Não se justifica isso – diz, calmamente, uma velha muito velha com a cara pintada de roxo.Um dos mais bem vestidos, enervado, bate à porta. Bate de novo, com mais vigor. Se isto for uma casamento, trata-se do pai do noivo. Sem que os ouçamos, todos podemos pressentir uma presença dentro da igreja. Há lá gente que respira. Há lá gente que toma a decisão de não abrir a porta.
Os mais calmos, fumam. São jovens. Riem-se do noivo. Olham para mim. Riem-se de mim. Não tenho a roupa apropriada e parece que saí de um casamento de três dias. Um deles faz-me sinal com um cigarro, respondo que não. Ponho os óculos escuros, escondo o rosto.
– Esta é a minha mãe... – a velha muito velha com a cara pintada de roxo afinal tem uma mãe que ainda vive.
– Muito prazer.Olho em volta, não vejo nenhuma cadeira nem uma mureta onde a mãe da velha se pudesse sentar. Isso, sim, aflige-me: parece-me que a qualquer momento ambas as velhas poderão falecer. É evidente que uma delas está pronta para partir.
O homem que seria o pai do noivo bate à porta. Com mais veemência. Uma figura esguia decide abrir a porta. Tem os cabelos encharcados, uma toalha na cintura. A luz obriga-o a esforçar os olhos.
– Já aqui estamos! – abre os braços, o pai do noivo.
– "Estamos"... quem? – pergunta o homem encharcado.
– Nós. Os do casamento.
– Ah, sim... E que horas são?
– São cinco e cinco.
– E a que horas tinhamos marcado?
– Às cinco em ponto!
– Então e vocês já chegaram? Eu estava ainda a tomar banho. Seria bom voltarem às seis.
– Às seis é o ca...Mas o homem, que era afinal um padre encharcado, voltou a fechar a porta. A mulher com a cara pintada de roxo segurava o braço da mãe que, por sua vez, se segurava nela.
Escutámos o som dos primeiros trovões. O terceiro, que foi muito forte, assustou o grupo. Primeiro o aumento do chuvisco, depois mais grosso, e finalmente gotas de água que magoavam o pescoço de quem, como nós, se encontrava desabrigado. Procuraram árvores e um curtissimo tejadilho onde não cabia todo o mundo. As duas velhas, a da cara pintada de roxo e a sua mãe de incalculável idade, seguraram-se nos meus braços. Se eu quisesse caminhar, elas iriam comigo. E vieram.
Atravessámos a rua, já encharcados.
– Aqui quando chove, não é brincadeira – uma velha sorri, aperta-me o braço.
– Não é brincadeira... – concordada a velha-mamã, e aperta-me o outro braço.Não sei o que fazer. Busco com o olhar um café aberto. Entrámos. Sentámo-nos os três. eu peço um chá. Elas pedem meio jarro de vinho tinto. Perguntam-me de onde sou mas não me deixam responder. Estranham o meu sotaque mas pedem-me que continue a falar só em português.
– É quase a nossa língua – diz a velha-mamã.
Perguntam se sou convidado da noiva ou o noivo. Sorrio. Não me deixam responder. Entendo, rapidamente, que não se trata de um diálogo. É, na verdade, um bi-monólogo roxo, regado a vinho tinto. As suas bochechas-rosa, passam a um tom tão avermelhado que tenho medo que desmaiem. Ou possam vir a morrer. Mas o sorriso da velha mais velha, entre o roxo e o vermelho, não anuncia nenhuma desgraça. Pelo contrário: é paz o que posso ler. A velha original, a dita "filha", tem a cara invadida por uma mancha borrada de um roxo aguado que a transforma numa guerreira índia. Abre a mala, devagar, e tenho medo que retire um dardo envenenado para me atordoar. Mas é uma máquina antiga de fotografar. Algo que não seria suposto caber naquela carteira de senhora.
– Mamã, ponha-se do lado deste jovem. Vamos mandar à sua mãe. Dizemos que é seu namorado.
As duas rebentam a rir. A velha-mamã, afinal velha-também-ainda-filha, aperta-me o pescoço num abraço vigoroso.
– Vamos, sorria!
Obedeço. São três fotos. O garçom olha-me de longe, com pena. Faço o sinal da conta. Elas pedem mais um jarro. Possivelmente são cinco e cinquenta e sete. Lá fora chove. Ainda.
Saio. Encharcado, deixo-me caminhar assim, sob a chuva torrencial de Santiago de Compostela. Penso, num tom roxo e amedrontado, no que isto seria se também a mãe da velha-mamã tivesse vindo ao suposto casamento.
Procuro mais uma fila para me pôr nela. E esperar. Uma fila é também um lugar em movimento.
Ilustração de Vânia Medeiros
Video-saudação do escritor angolego Ondjaki para os galegos e galegas
(julho de 2011)