«Em arameu eu nada compreendo»

Em arameu eu nada compreendo.
Em arameu de nada me cosco.
Em arameu que pouco me inteiro.
Em arameu eu não te entendo.

Eu não sei por que caralho ti
… me falas em arameu !!!   (…)

RUXE RUXE

Segunda, 07 Outubro 2013 08:33

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Iolanda Aldrei - O meu ser compostelano mistura-se com um arraigo de dez anos e genéticas várias nas terras do Ulha. Quiçá a literatura necessite tanto das bagagens próprias como das fontes múltiplas e dos espaços de criação híbridos, por isso às quartas-feiras de manhã me achego a Compostela e procuro as suas vozes de rua e café para pousa-las nos textos que vagabundeio entre chávena e pedra.

Conduzi, enquanto pensava no conto que me ocupa, uma história de misérias e alheamentos. Saudei no primeiro semáforo um homem de rosto simpático que vende panos e sorri para abrir a manhã, contei-lhe que não levava perto o saco e não lhe podia comprar:

- Não importa! Bom dia - E sorriso, e comunicação, e alegria.

Estacionei e acheguei-me a um vendedor de sortes indecisas, escolhi um bilhete e partilhamos bons desejos, simpatias várias, na língua nossa, em que a cidade se construiu e se cantou por séculos.

Uma nuvem de rostos chegados do Norte, do Leste, de peregrinações muitas, ocupava a rua com as suas falas diversas e com as cores insólitas das mochilas e as roupagens. Senti estas vidas também a construir Compostela, o cruze dos caminhos antes do fim do mundo, o silêncio e a reunião; sobre o chão de granito galaico que ecoa o próprio ser, o adorno dos passos bem-vindos. Distraí o meu pensamento do relato para me encantar com a ideia da entrevista a viageiros, nesse ponto e nessa hora, cruzar os caminhos com as palavras e partilhar.

Estas histórias criava eu ao cruzar a rua e contornar uma praça pequena e pouco transitada, quando vi um senhor idoso esforçar-se por indicar a uma peregrina solitária um caminho qualquer, talvez o da Catedral:

- Derecho, vaia derecho - dizia num castelhano soletrado.

A peregrina olhava para ele e repetia com a mesma estranheza com que o senhor pronunciava:

- Derecho? Derecho?

Outro homem tinha parado a contemplar a cena e indicava, com acenos, à peregrina que o acompanhasse no seu caminho. O primeiro dos informantes cedeu a tarefa:

- Vaia, vaia!

A mulher ainda hesitou, mas tomou finalmente a companhia do que parecia mais decidido a mostrar o itinerário, e antes, com muita segurança, voltou-se para o seu guia inicial e disse:

- Obrigada.

Novamente mudou o fio do meu pensamento para essa fórmula mágica dos desentendimentos obrigados por indumentárias e documentos. O ânimo sonhou com achegar-se e intervir, a dizer: “Fale à vontade, a sua língua é a nossa. Vá direito, sim, e depois vire à direita, apenas um bocadinho, até chegar à praça seguinte, que tem uma fonte no meio, e já sempre em frente, até enfiar o Obradoiro e a Catedral.” Eram as palavras que o seu guia improvisado teria dito para mim e que guardou dela, as palavras livres que as fronteiras mentais destroem. Não era tempo de intervir, mas de confiar, porque a companhia por poucas ruas podia devir numa descoberta mútua de entendimentos seculares.

Parei à porta de uma cafetaria famosa na Compostela de outros tempos por ser a linha de chegada de um rali lúdico alcoólatra, mas que mudou de aspeto e respeito. Verifiquei que oferecia pequeno-almoço com café ecológico, sumo natural e bolos ou torradas. Entrei. Ocupavam as mesas peregrinos bem atendidos e entendidos. Sentei num cómodo sofá, disposta a ligar o meu computador e iniciar a tarefa. Uma rapariga loira e miúda achegou-se:

- Um almorço com croissant, por favor.- Pedi.

O mesmo nome do espaço convidava a combinar com aquele bolo as possibilidades oferecidas na ementa, mas um “Quê?”  foi o único bolo que ofereceu a menina.

- Um almorço - repeti de boas maneiras.

- Ah! Um mosto?

- Não, não, um almorço-, disse nos modos galegos para referir a primeira comida do dia.

- No hay.

- Tem que haver almorço.

- No entiendo.

- Não entendes galego?

- No, no entiendo gallego.

Ergui-me lentamente:

- Vou-me, então. Como posso ser entendida onde não conhecem a nossa língua?

Das mesas, rodeadas de mochilas, pessoas chegadas de tantos lugares, bem atendidas no esforço babélico de quem quer compreender, viam admiradas a única mulher daquele espaço que era originária da cidade sair, porque não se entendia o seu pedido no idioma da terra.

O relato de misérias e alheamentos mudou de rumo. Deixou ficções e fez-se crónica.