Urbano Tavares Rodrigues, Morreste-nos

O primeiro dos seus quase cem títulos chama-se Santiago de Compostela (Quadros e sugestões da Galiza)

Sexta, 23 Agosto 2013 00:22

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Urbano Tavares Rodrigues

Carlos Quiroga - Foi no 9 de agosto em Lisboa. As Correntes d'Escritas renderam-lhe homenagem em fevereiro e dedicaram a ele a sua revista. Uma insuficiência cardíaca não lhe deixou estar presente na altura e agora apagou a sua vida antes dos 90 anos que faria em Dezembro. É a perda de um grande escritor e ser humano exemplar que continuava a escrever e a editar até ser internado. É a perda natural do homem mas ficam as obras perduráveis – quase centena que abre com um primeiro título em que está a Galiza.

Autor de uma obra literária e ensaística muito vasta e traduzida em inúmeros idiomas, do francês e do espanhol ao russo e ao chinês, recebeu prémios como o Vida Literária da Associação Portuguesa de Escritores, o Fernando Namora ou o Ricardo Malheiros da Academia das Ciências. Licenciara-se na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa onde cursou Filologia Românica e acabaria por ser professor. Cedo começou a militar na oposição ao fascista Estado Novo e passou pela prisão em Caxias e por um longo exílio em França, onde chegou a freqüentar intelectuais da década de 1950 como Albert Camus. Mas a entrada no Partido Comunista Português teria sido, como tudo o que fez, pelo seu sentido de humanidade ou pelo coração –como afirma o Possidónio Cachapa, realizador do documentário O Adeus à Brisa sobre o Urbano. O Possidónio, o Peixoto, eu próprio, atestamos a atenção que dava aos mais novos. O José Luís enviara para ele o seu Morreste-me em edição de autor e foi-lhe calhar apresentar precisamente o último título de Urbano, A Imensa Boca dessa Angústia e outras Histórias editado em Abril. Hoje somos muitos os que podemos passar ao plural com pena aquele primeiro título do José Luís pensando no Urbano.

Albert Camus e Urbano Tavares

Era sem dúvida uma pessoa admirável e da sua escrita vale a pena muita coisa. Terá preeminência o romance mas a ele se junta com solidez prosa poética, conto, poesia, até crítica literária e ensaio. Cerca dos cem títulos. Destacam A Noite Roxa, Bastardos do Sol, Os insubmissos, Imitação da Felicidade, Fuga Imóvel, Violeta e a Noite, O Supremo Interdito, A Estação Dourada, mas seria lista de nunca acabar. No início de Julho passado fez chegar à Dom Quixote o que será o seu último livro, Nenhuma Vida, a publicar este ano, "um romance muito curto e onde está todo o espírito do autor”, diz a sua editora Cecília Andrade, acrescentando que apesar de as personagens não serem auto-biográficas as questões abordadas têm muito da experiência do autor. No preâmbulo deste livro arvora-se a serena consciência da última viagem: "Daqui me vou despedindo, pouco a pouco, lutando com a minha angústia e vencendo-a, dizendo um maravilhado adeus à água fresca do mar e dos rios onde nadei, ao perfume das flores e das crianças, e à beleza das mulheres. Um cravo vermelho e a bandeira do meu Partido hão-de acompanhar-me e tudo será luz".

Tenho motivos de devoção por este maiúsculo autor por atenções que me tem dispensado mas seguramente haja quem neste canto atlântico se queira juntar: o primeiro dos seus quase cem títulos chama-se Santiago de Compostela (Quadros e sugestões da Galiza), a que já me referi na revista das Correntes. Vai agora em reverente homenagem galega.

Paisagem Urbana de Compostela

"Aqui deixo, tenho a certeza, muito da minha mocidade"

UTR

Eu li o Urbano com admiração longínqua quando estudante, como tanta gente. Tive depois a sorte de conhecê-lo humanamente próximo, já bem adulto. Aconteceu isto no 14 de Outubro de 2004, ele convidado em Santiago pela secção de Literatura e Indústrias da Edição do Conselho da Cultura Galega. Proferiu uma conferência na Biblioteca desta instituição sobre "A prosa de ficção portuguesa contemporânea" e deixou no ar um completo repasso do último quartel do século XX que teria bastado para eu lhe conservar toda a estima intelectual e artística. No entanto, especialmente por fora de formalidades, a sua contiguidade, cumplicidade, coincidência em tantos nomes amigos e conhecidos na leitura, apreciação e até trato, tipo Possidónio ou Peixoto, em volta de comidas e bebidas e conversas alvoroçadas, me deixaram absolutamente deslumbrado. Porque acima de tudo era e é humanamente recetivo, jovial, vital. Que depois em Lisboa me honrasse apresentando um livro na Ler Devagar, Julho do ano a seguir, que ainda enviasse o texto que escreveu para o JL em Agosto, que abrisse casa e amizade com bondade e delicadeza, obviamente me prostraram como aos pés de um deus, perplexo eu precisamente por tanta atenção –à que não estou deveras habituado.

No dia do seu aniversário em 2006 (6 de Dezembro) acolheu-me de novo em casa, e à brasileira Mônica Sant' Anna, sempre generoso de coração e as gavetas abertas, e gravamos em vídeo uma longa entrevista. Eu dirigia na altura a Agália e bem nela ou numa idealizada nova coletânea, inspirada nos Cadernos de Literatura Brasileira do Instituto Moreira Salles, imaginávamos dedicar uma bela monografia de estampas e textos a Urbano Tavares Rodrigues (UTR). Poucos escritores e intelectuais lusos que viveram tanta coisa, tenham tamanha obra –e sejam tão fotogénicos. Assim que o projeto parecia promissor. Até nos emprestou uma saca de material documental alucinante, cartas, fotos e recortes de toda uma vida, em que a importância do seu percurso se atestava em dogma sublime: seria fácil encontrar apoios para tal empreendimento que dávamos por feito. No entanto, nem as fracas forças que sustentaram a histórica revista da AGAL por mais de 30 anos chegaram a amparar a ideia, nem muito menos se achara alento para nova tramóia. O material voltou para Lisboa via Possidónio, quando ele começou a gravar o seu Adeus à Brisa. E eu disse adeusinho às pretensões ambiciosas de honrar tão admirável personalidade desde a periferia galega. Que neste ano a revista das extraordinárias Correntes se lembre de canonizá-lo congratula-me portanto sobremaneira, porque é o lugar mais certo onde os pares do autor o acatem, porque tem a centralidade que ele merece para a celebração da estima que tanta gente fundadamente lhe outorgue. Como contribuir a isso, para além do que levo dito, basicamente atestando o óbvio de ele ser bem digno do altar...?

artefacto primordial

Na lista bibliográfica de UTR chamou-me a atenção desde sempre o título Santiago de Compostela (Quadros e sugestões da Galiza), por motivos óbvios de certo magnetismo chauvinista, claro, mas também porque foi o seu primeiro livro publicado, com 25 anos de idade. Todo o mundo sabe do simbolismo, sentimentos encontrados e até ternura que representa um primeiro amor, um primeiro livro num percurso amplo como é o caso. A curiosidade pela primeira obra dada à estampa se me avivou no caso do Urbano porque o conheci em pessoa precisamente em Santiago. E de todos os grandes nomes da História da Literatura Portuguesa que conheci, muitos deles em Santiago, ninguém tinha sido tão delicado, implicado e acolhedor como ele, assim que eu me perguntei depois de tratá-lo se esse livro teria que ver –e não descansei até conseguir e ler. De modo que é sobre ele que quero fazer agora um mínimo apontamento. Sei perfeitamente que o que diga sobre o opúsculo não vai alterar em nada as linhas grossas que a grande crítica académica tenha determinado para ponderar os contributos intelectuais e artísticos do autor às letras do seu país, mas poderá apenas testemunhar a capacidade altamente sensível de uma alma gentil olhar o mundo. Um mundo, no caso, que é o da juventude em vigor já lucidamente atento e que, por acaso, coincidiu com uma cidade onde eu agora vivo e onde, como disse, encontrei por primeira vez o ser humano que o escreveu.

Santiago de Compostela aparece catalogado entre os livros de crónicas e viagens do autor. Foi publicado em Lisboa pela Empresa Nacional de Publicidade, com logótipo na última capa da Editorial Notícias, num ano de mudança de ciclo na vida do autor, 1949: final do Curso de Românicas, primeiro casamento, partida para a França como leitor e professor (Montpellier e Aix-en-Provence). No ano anterior tinha entrado como repórter para o Diário de Notícias, acumulando com a frequência do curso universitário (entrara para Direito em 1942, mudara para a Faculdade de Letras em 1944), assim que se trata do primeiro fruto de um jovem jornalista e estudante finalista de Letras, que atesta todos os sinais do escritor e professor que viria ser. Mas não se pretende aqui garimpar esses vestígios estabelecendo pontes para a futura obra, quero apenas deixar constância do caráter e alguns conteúdos dela, basicamente curvar-me às estampas de época que recolhe.

O livro é de pequeno tamanho (50 p. , 20x12,5 cm) e o autor parece consciente da sua natureza invulgar, colocando de início uma breve tentativa de justificação em que, citando Oscar Wilde, leva para o plano da satisfação de um capricho a publicação da sua meia dúzia de crónicas. Mas também alude a um passado adolescente de sensibilidade excessiva, de que se envergonhava, pois "Quando alguma vez deixava fugir uma confidência, parecia-me ficar desamparado, maisfraco, menos rico de mim, mais exposto à gargalhada forte da gente prática". Nesta altura, ainda fiel a si próprio para além do queo autor julgava, é esse mesmo sentimento que o leva a sugerir um "quase me apetecia destruir o excesso de emoção das páginas que se seguem...", numa advertência do que realmente aí se encerra.

O que aí se encerra, em contraste com o a curta materialidade, ou até por causa desta, é de uma grande intensidade lírica, com mola comprimida que dispara constantes apelos à sentimentalidade provocada pela paisagem, tipos e experiências recolhidas. Numa estrutura geral de sete 'capítulos' com título, que ainda encerram alguns subtítulos, uma narrativa de observação declaradamente retrospetiva e saudosa deixa constância do que mais comoveu o observador, a começar por algum dos grandes tópicos compostelanos cuja glosa não deixa de ser extraordinária pela época, protagonistas e elementos selecionados na observação. Não cabendo uma anotação extensa, até porque acabaria por coincidir com todo o conjunto, reportarei apenas para alguns grandes momentos, e de início precisamente os inscritos nos dois primeiros blocos ("As Festas do Apóstolo" e "As solenidades máximas do Jubileu"). De intensidade lírica, sim e sempre, mas neste caso concreto assoprando a um tempo trompetas épicas.

jacobeu franquista

As crónicas referem sem dúvida experiências do Verão anterior à publicação do livro pois 1948 foi Ano Jubilar Compostelano (Ano Santo, Jubileu, Ano Jacobeu), uma celebração religiosa estabelecida por Calixto II em 1122 e levado a efeito por primeira vez em 1126. As indulgências concedidas pela peregrinação a Santiago seriam então declaradas perpétuas e equiparadas em 1178 às concedidas por ir a Roma ou Jerusalém. Para ser Ano Santo, o dia do apóstolo Santiago Maior (25 de Julho) deve coincidir em domingo, o que sucede habitualmente cada 6, 5, 6 e 11 anos. O relato de UTR coincide com a altura em que a invenção jubilar é retomada em força pela ditadura franquista. E não será supérfluo deixar aqui alguns esclarecimentos contextuais prévios, para melhor apreciar o contributo documentário do autor, que em nenhum momento coloca qualquer interferência ideológica.

[Aquilo de antigo bispo ter descoberto corpo de apóstolo não tinha sido imaginativa original –para além de haver corpos de Santiago até em Jerusalém, precisamente o desse morto do século 1 na Palestina apareceu em muitos lugares da Europa vários séculos depois, Angers, Échirolles, Arras, Toulouse, etc. Mas o milagre acabou por consolidar-se em Compostela particularmente depois de 1878, com pretensos fundamentos mais científicos que nas outras apostas. E foi a restauração do próprio Franco em 1937 (chamado na época Primeiro Ano Santo Triunfal), amplificando em seu redor o Patrão da Espanha para preencher todos os 25 de julho a Praça do Obradoiro de soldados golpistas, quem lhe deu a instalação moderna, como formidável complemento da sua sinistra máquina de opressão e crime. O Papa Pio XI concedeu-lhe ainda 1938 como Ano Santo "Extraordinário", prórroga do anterior para que pudessem conseguir indulgências as pessoas que não conseguiram por causa da Guerra Civil. Franco estabelecera em agosto de 1936 a figura de Santiago como Patrão de Espanha declarando o 25 de julho Festa Nacional e realizando pessoalmente a Oferenda nos anos 1948, 1954, 1965 e 1971. No 37 estava ocupado com a Batalha de Brunete. A mulher, Carmen Polo, foi a protagonista das cerimónias da Traslação (cada 30 de Dezembro) e da Abertura da Porta Santa (cada 31 de Dezembro anterior ao Ano Santo). A Oferenda e todo este assunto tinha perdido consideração institucional no 23 de julho de 1931 por iniciativa da República. Só a partir do final do século XX, com a abertura de arquivos e início das investigações das matanças do franquismo com intervenção da ONU (até à morte do tirano em 1975, continuaram as liquidações de opositores por fuzilamento ou garrote vil, uma espécie de estrangulamento medieval), foi ficando à vista a presença hegemónica do Opus Dei no regime ditatorial e como a Igreja foi instrumento de submetimento de primeira ordem.]

A estampa que nos dá UTR neste livro recolhe a encenação franquista central do Ano Santo, período por excelência da chegada de peregrinos. Mas para a tardede 23 de Julho, ponto de arranque desta narrativa, estava anunciada a grande romagem da Acção Católica, e pouco antes dahora o narrador dirige-se para a Praça Quintana já lotada:

Nisto, a multidão rumoreja, agita-se. Souempurrado, ganho a primeira fila aos tropeções, contagiado por aquela impaciência entusiástica. Os peregrinos, pela Via Sacra, entramjá na Plaza de Los Literarios. Adiante os«seuistas» – membros do Sindicato dos Estudantes Universitários. Vêm desde muito longea pé, de Roncesvales, onde se concentraram.Queimados pelo sol, emagrecidos, marciais.Alguns, estropiados, coxeiam. Rente a mimpassa um gigante loiro, asturiano por certo,com uma perna entrapada, visìvelmente exausto, mas de olhar alto, chamejante, mirandoporventura a Porta Santa com uma emoção quelhe invejo. Desfilam em grupos, com suasbandeirinas azuis, onde se lê a branco: Murcia, Valência, Valladolid, etc. De todo o país acorreram a Roncesvales universitários católicos, ansiosos de reviver a tradicional peregrinação. Os uniformes azuis do S. E. U., poeirentos, sem atavios, com os capuzes tombadospara as costas, harmonizam-se com a belezaevocativa do momento. Pregada no peito de cada peregrino alteia-se a concha simbólica, com a cruz de Santiago; alguns apoiam-se no bordão tradicional que tem duas cruzes ao alto. Todos cantam, mas não consigo distinguir as palavras. Porventura isso mais meimpressiona. Uma melopeia de monges guerreiros, donde se elevam apaixonadas ressonâncias: Cristo, Santiago, Espanha... A palavra Espanha a todo o momento em todas asbocas. É o que me espanta: o sentido patriótico desta manifestação de fé, a indissolubilidade dos dois valores Cristo e Espanha. (pp. 7-8)

Seguem "os peregrinos da América espanhola – todos seminaristas", e observa-se que entre os estudantes"com sua ardência bélico-religiosa, e os homensde igreja que fecham o cortejo" não existe uma separaçãológica, "completam-se, confraternizam, irmana-os um sopro de cruzada". Escutam na basílica cerimóniasreligiosas e cantam,

Espanha, sempre Espanha nas suas bocas! Depois uma alocução de um clérigo: Santiago, Cristo, Espanha. Compreendi: a nova terra da promissão,o baluarte irredutível da cristandade, terra deapostolado, terra de combate, é Espanha – aEspanha de uma nova cruzada, em prol deCristo, contra os modernos inimigos da fé. (p. 9)

Certamente naquele instante podia-se catar "a alma da nação na catedralde Santiago". A atenção desvia-se por um momento dos cruzados para um peregrino esfarrapado que se afigura"elemento não só absolutamente certo comoindispensável na catedral", como um baixo relevo românico, mas a crónica volta-se de novo ao estertor público das ruas, na manhã de 24, em que "Dançam na Quintana os 'Gigantones' ao som das gaitas galegas", e para os divertimentos da tarde, em que ainda se esperava a chegada de Franco. Mas o ditador fica afinal na Corunha e a queima da fachada pirotécnica da Catedral, e os fogos de artifício, tem toda a atenção, com algum pormenor técnico que por certo nunca tinha ouvido: "é constituído umcastelo simbólico de fogo preso, para que umminúsculo avião, que parte do alto do Paláciode Rajoy, o incendeie no final da festa" (p. 13). O capítulo encerra-se com 'Uma visão medieval' na noite profunda: "peregrinos dormiam pelas ruas encostados às paredes, uns embrulhados em mantas, outros sobre fardos de palha".

No segundo capítulo (As solenidades máximas do Jubileu), a ardência bélico-religiosa está presente nos ornamentos da cidade com marcas especiais que anunciam a chegada do tirano:

Em cima, num céu excepcionalmente límpido e azul, recortavam-se, minúsculas, silhuetas de aviões [...] Frente ao pórtico românico do colégio de San Jeronimo, faiscavamcapacetes, espadas, baionetas; cordões de polícia continham a multidão impaciente; sob as arcadas do Palácio de Rajoy concentravam-seministros e altas individualidades. Na imensidão da praça, mais soldados, muitos soldados,rígidos, marciais, de capacetes reluzentes. Oficiais de fardas vistosas, com faixas vermelhasflamantes, cruzavam-se com os falangistas, deelegantíssimos uniformes. (pp. 17-18).

A entrada de Franco, a toque de clarim, acompanhado de esposa e filha, é cesariana com repique de todos os sinos da cidade e delírios de palmas, e divinizada com botafumeiro e palavras do responsório : «El Señorlo ha elegido y lo ha colocado en alto sobrelos reyes de Ia tierra...» (p. 18). Quando "Sob o pálio, desce do altar o Generalíssimo Franco", vai atrás um padre transportando a taça com a oferenda simbólica de mil escudos em ouro "preito de gratidão do povo espanhol ao milagroso protectorde CIavijo". Esclareça-se de novo que a partir do achado do corpo por parte do bispo aquele, e com base em falsificações até literárias hoje provadas, para no princípio do século 9 poder coroar um rei amigo, começou a elaborar-se a lenda sobre a aparição do Apóstolo a cavalo na batalha de Clavijo matando muçulmanos, fundamento do cobro aos camponeses do voto de Santiago como agradecimento.

Mas voltemos ao cortejo no relato, seguido em procissão solene pela catedral da urna com as relíquias de «Santiago el Menor», uma arca de prata que fora sacada por primeira vez desde a construção da cripta para rogar pela rápida vitória do exército franquista na Guerra Civil. Pelo livro de UTR decorre a missa solene e chega a Oferenda com Franco de joelhos –que pede a Santiago proteção para a Europa, implora paz e bons costumes, encomenda Espanha ao seu patrono. O Cardeal Primado responde exaltando as virtudes tradicionais de Espanha, "estadocatólico e social surto da Cruzada. Exorta,por último, o Apóstolo a amparar a Nação e o Chefe do Estado". O séquito penetra na câmara do Apóstolo, "o Generalíssimo Franco impõe a medalha de ouro da Cidade à imagem de Santiago", e quando a cerimónia acaba, "A manifestação prossegue, lá fora nomesmo ritmo de entusiasmo desbordante". Franco vai ainda para uma receção no Concelho, vitoriado pela multidão. O narrador em sentido contrário, afasta-se da algaravia para Belvis, ver a cidade de longe, cheio de emoções contrárias, citando de Rosalia, "Ciudad extraña, hermosa y fea a un tiempo". Assepsia contemplativa...? Talvez.

e então Lorca

Depois destes dois capítulos, que retratam sem valorização aparente a instrumentação político-religiosa de Santiago e do Apóstolo por parte do franquismo, o livro encaminha-se definitivamente para a visão sentimental e íntima da cidade. O capítulo III (Velada Romântica), recolhe cenas noctívagas posteriores às festas do Apóstolo, um murmúrio abafado de vozes procedente da catedral no meio da cidade quase deserta e silenciosa, os severos muros e as janelas cruéis do convento de S. Pelaio. Este mosteiro provoca uma das meditações de maior intensidade no narrador ("Como podiam ali viver mulheres sem assomarem uma vez o rosto àjanela ou verem sequer o sol?"), e quando as freiras cantam em latim, serenamente no mistério da cidade adormecida, o narrador fica desconcertado,

E há nesse cântico baixo,suave, uma firmeza, uma claridade tais quevarrem por um momento a minha ideia romântica de monjas pálidas e torturadas. Penso então que talvez sejam felizes. E sinto-me desorientado, pequeno, num vendaval de incertezas. Já não posso detestar esta fortaleza, expressão de fanatismo cruel; os meus olhos,que vagueiam ao longo da pedra escura, nãovêem mais os ferros brutais das janelas: vão-se erguendo para o alto, de onde partem as vozes. Talvez neste momento as monjas olhem o céu, onde tremem algumas estrelas. Vislumbro a beleza do seu sonho, a sua ânsia de se unirem a Deus. (p. 27)

Mas para além do canto gregoriano que procura reconstruir ("Acaso o mais belo momento que vivi"), chama-me especialmente a atenção outra evocação poética imediatamente anterior, na Praça da Quintana. Nesta, as manchas do luar convocam os versos em galego de Garcia Lorca, um poeta que tinha estado em Santiago em Maio de 1932, convidado a dar uma conferência e que, fascinado pela cidade e pelo grupo de estudantes e amigos que o acolheu, de volta em Madrid pretendia organizar uma homenagem a Rosalia e "se propone escribir un poema sobre asuntos gallegos", assegura um jornal.

Seriam vários, os Seis Poemas Galegos em colaboração com Ernesto Guerra da Cal (incitador e dicionário deles, cinco até são manuscritos de Ernesto) e de Eduardo Blanco Amor (depositário dos manuscritos e prologuista). Seriam impressos pelo editor galeguista e republicano Anxel Casal no 27 de Dezembro de 1935, mês e meio antes do mesmo ser alcalde de Santiago, em Fevereiro de 1936. Casal seria detido no 4 de Agosto e o seu corpo apareceu no 19, na berma da estrada de Cacheiras, assassinado pelos golpistas. Exatamente nesse mesmo dia apareceu o corpo de Lorca, entre Víznar e Alfacar, na província de Granada. Da coincidência cronológica das mortes não podia saber UTR, e a cita de Lorca também aparece no seu texto sem qualquer valorização ideológica. Mas que coincidência a citação, depois dos capítulos anteriores, e como teria o autor conhecimento do poema galego de Lorca em 1948?

paisagem, amor

Na evocação da Universidade (capítulo IV), para além da síntese histórica e ambiental, com boémia estudantil até de referência livresca (o clássico de Perez Lugin, e é que a estadia de UTR acontece nas férias), levanta catálogo de Faculdades, escolas e liceus, laboratórios e salas de leitura, referindo-se no fim àenorme Biblioteca Universitária:

Visitei por várias vezes este salão, no intuito de colher informações, muitas informações. Mas nunca o cheguei a fazer. Quandome encontro só numa imensa biblioteca, sinto flutuar na atmosfera uma ideia de morte. Umlivro que se lê é a aceitação momentânea de um guia, que nos desvenda panoramas da sua alma ou quadros da sua visão, um compromisso entre duas imaginações-realidade viva, coisa presente, seja embora da época das Cruzadas. Mas as lombadas pomposas, simétricas,graves, que se alinham nas estantes de umabiblioteca, são como os túmulos do espírito -plangentes e solenes. Um senhor calvo, prescrutador, enfezado, dos que por ali deciframmistérios bibliográficos, pode convidar-nos aum sorriso irreverente, mas não conseguiremos dissipar a atmosfera de opressão. O queé estranho é que nas bibliotecas eu penso sempre no amor. É uma reacção do instinto. Perante o que significa sombra, doença, morte,insurgem-se em mim, heréticas, violentas,quase bárbaras, insuspeitadas forças naturais.(p. 36)

Nas bibliotecas o narrador pensa sempre no amor, mas fora delas não descuida. A sugestão do feminino já estivera bem em volta nas páginas anteriores, e continuará. O capítulo V (Silhuetas inquietas) alberga um friso de sombras e de figuras surpreendidas através duma emoção, ou no esboçoduma atitude, em que elas não deixam de aparecer. Recolhe "as mais vivas, não asmais interessantes, mas as de mais acentuado recorte, que quase se fixaram" no espírito do narrador,que persegue a sua recriação sentindo embora como imensamente as mutila e reduz (p. 37).

A evocação parte da saudade profunda que se menciona de entrada, caracterizando o teor de todo o livro ("Quando agora, embebido em horas calmas de modorra, intento ressuscitar, por deleite deimaginação, o tempo agitado da minha estadia em Santiago, não logro mais que uma visãoflutuante, incerta", p. 37), e abre passagem a dois subtítulos, "Um poeta" e "Balada do crepúsculo", que ilustram bem o cosmopolitismo que já caracterizava a paisagem humana de Santiago à época. No primeiro caso refere-se a "um napolitano de seus vinte e cincoanos, com um brilho irónico e pagão no olharescuro" (p. 38), conhecido num hotel à chegada a Santiago, e que "tinha entre mulheres umraro poder de comando" (p. 39). No segundo, a um polaco com cabelos longos de músico, com quem se entende em francês. Um pedinte com garota da mão aborda-os precisamente por isso, ao ouvi-los, e confessa-se com orgulho igualmente francês. E uma americana, desportiva, inquieta, risonha, passa por eles e leva consigo o polaco "em véspera de batalha". Enfim, é o capítulo que se encerra com o declarativo "Aqui deixo, tenho a certeza, muito da minha mocidade" (p. 43).

Estamos já sem espaço para requintes. Cabe apenas registar que no VI e último bloco (A distância) há uma separação física da cidade, com dois subtítulos, "Experiência fascinante" e "Filosofia e miséria". O primeiro retrata um espanhol que, em contradição à lógica das supostas psicologias nacionais, "podia abeirar-se dum semelhante quase sem emoção, como frio interesse intelectual de um cientista queanatomisa insectos" (p. 45) –mas acima de tudo trata-se de um depredador de mulheres, de quem vai relatar uma tentativa e episódio decorrido numa merenda em paço galego, Santa Cruz de Rivadulha. A segunda e última parte é a história dum almoço e passeio na cidade da Corunha, com um valenciano observador artístico de paisagens e quadros de miséria.

Já foi longo e por aqui me fico. Dá-me a impressão depois de ler este primeiro livro de UTR que o coração do autor derreteu de modo especial nesta cidade onde agora estou. Não sei se isso justifica aquela atitude gentil que dele mencionei no princípio. Confirmo, sim, que o livro prova a capacidade altamente sensível de a sua alma delicada olhar o mundo. E que bom que este fosse, coincidindo com os anos ricos da juventude em vigor, e em primeiro livro, o da cidade onde vivo e escrevo –e tive a sorte de encontrá-lo por primeira vez.