As marcas dos ofícios nas laudas Santa Maria A Nova de Noia
Segunda, 29 Julho 2013 00:00

Félix Rodrigo Mora - Visitando em Noia a igreja-museu de Santa Maria a Nova e a sua “quintana de mortos”, atraem a atenção as numerosas inscrições lapidárias referidas a ofícios, que lavraram, ou pediram para ser lavradas, as pessoas que lá se fizeram soterrar, homens e mulheres. Na arte românica as representações de trabalhos e trabalhadores são numerosas, o que explica que um capítulo do meu livro Tiempo, historia y sublimidad en el románico rural, esteja dedicado a esta questão. Mas o que se observa em Santa Maria a Nova é excepcional.
Admite-se que provavelmente seja a maior acumulação de laudas medievais com símbolos do trabalho manual de toda a Europa, pertencentes a imensa maioria ao medievo. Por isso e por outros motivos, o assunto demanda uma investigação cuidadosa e de longa duração, da qual este artigo é apenas uma modesta e muito incompleta seção.
Sobre o rude granito encontram-se signos próprios dos carpinteiros, de ribeira e de terra, os moinheiros, os mercadores, os xastres, os serradores, os marinheiros, os tecedores, os canteiros, os peleteiros, os padeiros, os toneleiros, os pescadores, os sapateiros, os carniceiros, os ferreiros, os tratantes, os cereiros e outros muitos ofícios artesanais. São soterramentos de trabalhadores e trabalhadoras, como por exemplo Maria Fernandes, ou Maria de Noiha, natural da vila e falecida em 1422, cuja lauda leva gravadas as ferramentas de quem tem por ofício a carpintaria de ribeira, mesmo que esta fosse achada na Crunha. Admite-se que a imensa maioria destas laudas se fizeram nos séculos XIV e XV, embora possa haver alguma de datas anteriores e várias dos séculos posteriores, até o XIX. Certamente, também há laudas senhoriais, mas estas são secundárias no conjunto.
A igreja, consagrada em 1327, foi originariamente de uma só nave, em estilo ogival com alguma rememoração românica, cabeceira retangular (o que é mui pouco usual) e mínima espadana sobre a portada principal, decorada com peças escultóricas de factura pobre, o que contrasta com a magnífica roseta. Carecendo de torre, o conjunto oferece uma imagem apegada ao chão, humilde e entregada.
Acostuma afirmar-se que se trata de uma construção senhorial, e mesmo há uma inscrição que parece confirmar essa hipótese, mas o seu aforo reduzido e a formidável presença dos ofícios manuais faz suspeitar que estejamos, em verdade, ante uma igreja de concelho, ou popular, na que as agrupações e irmandades de trabalhadoras e trabalhadores tiveram funções decisivas. É preciso lembrar que a magnífica, por bela e sublime, basílica de Santa Maria a Maior de Ponte Vedra, de princípios do século XVI, erigida em estilo gótico e isabelino, foi levantada polo Grêmio de Mareantes da cidade, que agrupou os ofícios do mar.
Nesses séculos o trabalho manual possuía um reconhecimento e prestígio formidáveis, e as laudas da “quintana de mortos” de Noia é uma manifestação disso. Os trabalhadores não eram apenas proprietários dos meios de produção e da ampla maioria das matérias primas (que acostumavam conseguir-se nos imensos espaços comunais), mas organizavam também desde a sua soberania e autonomia o ato laboral, desde o início até o fim. Era um trabalho sem chefes nem patrões, onde cada artesão, ou cada obradoiro, polo geral pequeno e de tipo familiar, se auto-organizava, sem mais hierarquias do que as naturais, provenientes do bom fazer, o saber e a experiência.
Desconheciam também um dos piores flagelos do trabalho não-livre contemporâneo, a especialização. Quando se nos diz que quem se fez enterrar sob uma lauda determinada era, por exemplo, carpinteiro, ou ferreiro, ou toneleiro, não pensemos que a pessoa dedicasse a esse ofício tudo o seu tempo laboral. De jeito nenhum. Adicionalmente, tinha sempre uma horta, dispunha de gado e aves de curral, praticava a pesca, a caça e a coleção de frutos e ervas silvestres, reparava quando era preciso o telhado da sua casa e sabia fazer dúzias de ofícios mais. Um deles ocupava-o principalmente e por ele se definia.
Ainda, o tempo do trabalho era limitado. Existiam, em primeiro lugar, uma notável quantidade de feriados, talvez uns 150 por ano, e cada dia laboral tinha duração limitada. O trabalho estava também unido a variadas manifestações de festa e gozo, na forma de canto, música, recitação, albaroques e celebrações. Não estava presente essa catastrófica diferenciação entre o laboral e o festivo que hoje existe, e que faz intolerável o primeiro e degradante o segundo.
Não deve considerar-se que estes artesãos operassem para o mercado. Por vezes usavam o numerário, mas em outras muitas ocasiões realizavam intercâmbio de produtos salvaguardando a justiça comutativa, exigindo que cada qual recebesse bens com tanto tempo de trabalho médio incorporado como os que ele entregava. O crescimento da pressão tributária resultante da emergência do ente estatal castelão, e também a expansão do comércio marítimo de longa distância, a partir do início do século XV, ampliou a circulação monetária e fez retroceder os sistemas de troco, mas sem eliminá-los totalmente.
Estes trabalhadores, em efeito, padeciam da exploração, pois pagavam tributos à coroa de Castela, fosse de jeito direto ou através dos senhores territoriais, laicos ou eclesiásticos. Mas era simples, ou única, e não tinha lugar no ato produtivo mesmo, provindo do sistema político.
Hoje, no regime salarial, os trabalhadores sofrem uma dupla exploração: a que enriquece o empresário e a que fortalece o Estado, com os impostos. Ainda, carecem de toda liberdade no ato do trabalho, que nem dirigem, nem ordenam, nem planificam, nem organizam, sendo simples instrumentos do patrão, que torna a empresa em hierárquica e militarizada, servindo-se da tecnologia para maximizar o seu poder. Assim, as tarefas laborais são crescentemente parceladas e especializadas, mutilando o produtor. No seu conjunto, o trabalho assalariado destrói a pessoa criando seres-nada, convertendo a produção num tormento que origina inumeráveis doenças físicas e especialmente psíquicas, e que empurra milhares de pessoas ao suicídio cada ano.
A grande revolução emancipadora da Alta Idade Média, séculos VIII e IX, libertou e dignificou o trabalho de muitos jeitos. Deu cabo ao sistema escravista, liquidou o Estado (mas não por completo), que no fim do Mundo Antigo se tinha convertido em opressor principal dos trabalhadores ao regular coercitivamente toda a atividade laboral, e eliminou a grande propriedade. Com estas transformações de signo revolucionário reduziu a nada o estigma sobre o trabalho manual, que era tido anteriormente como uma tarefa indigna, vil y oprobriosa. Este trabalho produtivo libertado que surge daquele grande câmbio civilizador é o que se manifesta com orgulho na arte românica e posteriormente, nas laudas de Santa Maria a Nova de Noia. Com tudo, ao estar submetido a um sistema de tributação em benefício da instituição da coroa, contém um fator regressivo inicialmente pequeno mas que se irá desenvolvendo com os séculos, infortunadamente.
O monacato cristão revolucionário, que foi a força motriz da revolução civilizadora da Alta Idade Media, fez da obrigatoriedade, por sua vez espiritual, económica, política, convivencial e ética, do trabalho manual um dos seus pontos de diferenciação com o monacato institucional e conformista. Fazer as cousas com as próprias mãos, sem por isso desdenhar, nem muito menos, o uso de ferramentas e máquinas (em particular as movidas pola força da água), era questão mantida com todo rigor nas regras monásticas daquela tendência. Desse jeito realizaram uma achega cardinal à regeneração integral da Europa, devastada polos impérios conquistadores e agressores, o romano e os que o sucederam, todos eles envilecedores do trabalho, ao fazê-lo submetido e não-livre.
Santa Maria a Nova, no que possui de mais emblemático, não se pode compreender sem compreender com rigor e exatidão essas regras monásticas.
O trabalho manual e produtivo livre é uma via para a elevação e melhora da pessoa. Ao praticá-lo realiza-se o indivíduo como sujeito de virtude e ser humano integral. A grande mutação da Alta Idade Media tinha como um dos pontos essenciais do seu programa a universalização do trabalho manual, para assim fazer impossível a escravidão e a exploração, para além de autoconstruir a pessoa. Por isso, todas e todos deviam trabalhar com as suas mãos. E isto fazia-se com orgulho, pois era um ato livre, autodeterminado, criativo, coletivo (ao estar assentado na ajuda mútua), de intensidade, ritmo e duração limitados, não parcelado nem especializado, organizado polos próprios produtores, vinculado à festa, alheio à cobiça e à vontade de poder.
Nalgum texto qualifica-se de “lápidas gremiais” as de Santa Maria a Nova, o que deve ser matizado. Uma cousa são as irmandades e confrarias livres de trabalhadores, que foram muito numerosas no medievo, a grande época do trabalho manual autónomo, e outra os grémios. Estes organizavam os artesãos das cidades conforme os interesses das instituições. Aquelas existiram primeiro e posteriormente algumas degeneraram em grémios. É duvidoso que em Noia houvesse sociedades gremiais com anterioridade à segunda metade do século XV, ainda que este assunto precisa ser investigado. Portanto, o mais provável é que a imensa maioria das laudas sejam alheias, por anteriores, à ordem gremial, que teve o seu melhor momento em datas tardias, nos séculos XVII e XVIII.
Um ponto fundamental que os estudos publicados sobre Santa Maria a Nova não acostumam tratar é a natureza da ordem política daquela existente em Noia. Não sabemos quase nada do seu concelho, em tanto que concelho aberto, de ordem assemblear. A igreja erige-se nuns anos dramáticos para todos os territórios submetidos à coroa castelhana, os do rei Afonso XI (1312-1350), que propícia e impõe o passo do concelho aberto ao concelho pechado ou regimento (governo municipal designado pola coroa) em numerosas vilas e cidades, às vezes contra a vizinhança e outras contando com a resignação, a indiferença e até a culpável colaboração das classes trabalhadoras locais. Também não sabemos muito do seu direito consuetudinário, o de criação popular, ainda que há notícias de que no século XIII é elaborada uma carta foral na vila de Noia.
Necessitamos conhecer a ordem política assemblear que deveu existir em Noia, e o seu processo de desnaturalização ou extinção, assim como as condições em que esta teve lugar. Isto continha uma grave ameaça, não por diferida e subterrânea menos certa, para o trabalho livre e associado próprio do mundo medieval nos seus tempos de esplendor. Da ordem política despótica surgiu, andando os séculos, o trabalho semi-servil e desumanizador contemporâneo, que resultou numa imensa catástrofe civilizacional.
A lenta mas inexorável degradação da ordem política e dos sistemas de trabalho em Noia, em toda a Galiza e no resto da península Ibérica, por causa da ascensão do poder estatal na forma da instituição da coroa castelhana, põe-se de manifesto com a, aparentemente, rápida diminuição das laudas dos ofícios a partir do século XVI em Santa Maria a Nova. O mesmo se observa nos diversos estilos artísticos. A ordem românica, séculos XI até inícios do XIV, possui numerosos cenários de trabalho e bastantes representações de trabalhadores, sobretudo escultóricas, mas a arte ogival, que emergiu imediatamente depois, muitas menos, e a gótica, que é a culminação daquele, muito poucas, para desaparecer quase na sua totalidade nas diversas expressões do estilo renascentista.
Os trabalhadores são expulsos da arte passo a passo, a medida que os efeitos emancipadores reais da grande revolução da Alta Idade Media são subvertidos. O mesmo ocorre nos lugares de soterramento. Já no século XVI, e mesmo antes, emerge com força a ideia de que o trabalho manual é “degradante” e impróprio de pessoas de qualidade, o que leva a que os ofícios já não se ostentem com orgulho senão a que, em ocasiões, se velem e ocultem com vergonha, também nas suas expressões funerárias.
Uma questão curiosa, considerando a data na que se erigiu o templo, 1327, e a importância que nela tem a “quintana de mortos”, é conhecer que aconteceu com todo o conjunto na crise do século XIV, quando o número de habitantes diminuiu de maneira dramática e a peste negra golpeou o ocidente europeu de forma intermitente, até os anos iniciais do século XV. Esta crise, realmente apocalíptica (morreu entre 25% e 50%, segundo os territórios), veio unida a uma atroz mudança política regressiva, o retorno aos sistemas de governo despóticos com a extinção das formas participativas assembleares nas grandes populações. Provavelmente aquela possa ser explicada a partir desse rotundo transtorno envilecedor da ordem política. Como foi em Noia a aterradora crise do século XIV, convertida em expressão muito real da enorme catástrofe coletiva? Incrementou-se ou não para essas datas o número de laudas, imaginando que isto possa ser averiguado?
Para compreender de jeito razoavelmente completo a Noia que erige Santa Maria a Nova e o seu cemitério (ainda que este, quase com certeza, já existia com anterioridade), precisamos conhecer muito melhor a ordem assemblear e de concelho da vila, assim como a sua crise a partir da metade do século XIV, os sistemas de organização do trabalho com a ajuda mútua, o regime comunal integral existente, a sua vinculação mercantil com territórios afastados através das rotas marítimas, as formas de organização jurídica e militar imperantes, as relações entre o artesanato urbano e o universo rural circundante, a situação da língua galega e o estado da cultura de elaboração e transmissão oral própria das classes populares. Com isso poderemos compreender melhor essa realidade imensa que é a acumulação de laudas sepulcrais com signos dos ofícios que se acham nesta magnífica vila galega.